quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O dia

(Agora um texto diferente. Não uma crônica, mas um mini-conto. Escrevi há tempos, e achei interessante postá-lo. Talvez agrade a alguém)


O dia anterior

Casa de família de classe média, num bairro qualquer de São Paulo, entre as 19h e as 21h.

A TV já estava ligada. Embora ninguém da família tenha se visto durante quase todo dia, ao chegarem nada dizem. Ouve-se um único e ligeiramente entusiasmado "boa noite", abafado pelo tilintar das colheres a pôr comida nos pratos, pelos copos e travessas batendo na mesa de jantar, anunciando o início da refeição.
Embora a TV permanecesse ligada, ninguém olhava para ela. Olhavam para o prato, vez ou outra uns para os outros, mas o olhar era distante, cada qual absorvido em seus pensamentos:

"Olha aí, eu bem que desconfiava, chega com uma alegria em casa! Uma disposição! E cada vez mais tarde, mas pensa que me engana...ah não! Suportei até hoje, cuido de tudo, da casa, das crianças. Ele não é ruim, eu sei, mas não tenho mais dúvidas, só pode ser isso! Tem muita moça novinha por aí doida pra se arranjar com homem assim. Tá mais que explicado. E eu, que sempre me contive...se ele soubesse o quanto eu me contive...mas agora chega, se ele pode, porque eu não? E vai ser amanhã mesmo, tá resolvido."

"Droga, porque justo agora? A gente fez tudo certo, não tinha como acontecer. O que vão pensar?...minha vida tá arruinada, minha família vai me odiar, eu vou ter que me arranjar sozinho. Todo mundo confiava em mim, eu não podia desaponta-los...já sei, vou falar pra ela tirar, ela não vai ganhar nada com isso mesmo, se pensa que vai, azar o dela...é isso mesmo, ela vai ter que tirar..."

"Esse chuchu não tem gosto de nada, eca! Eu que não vou comer, acho que vou colocar no bolso e levar pro Galileu, ele come de tudo mesmo. A mãe fala que só pode dar ração, se não ele fica com diarréia...ou senão eu jogo no lixo...não, se alguém ver eu tô lascado, melhor na privada, isso!...ah, mas o pai fala que não pode desperdiçar comida, melhor dar pro Galileu mesmo, levo um bife junto."

"Que chatice, quero voltar logo pro meu quarto, não tô com a mínima fome. Mas se eu não comer tudo não posso sair da mesa...eles pensam que eu ainda sou criança, mal sabem eles que...uuu, como o papai é desprezível, roçando o pé na perna da mamãe debaixo da mesa, pensa que ninguém vê, será que não percebe que nem a mamãe tá gostando, olha a cara dela...ele não entende nada...nem ela, alias ninguém entende...já sei! Fujo de casa!!...amanhã!..."

"Ah! Que maravilha, depois de tanto tempo, sabia que eles iam reconhecer. Com a saída do Jorge só eu poderia ocupar esse lugar. E o Moraes deu tudo a entender...será o fim de tantas horas extras, eu não aguentava mais...ah, tudo por essa família. Com essa grana extra talvez eu até compre aquele apê na praia que ela tanto quer...vai ser mesmo uma maravilha! mas não vou contar nada a eles ainda, deixa o Moraes confirmar...e ela que me aguarde daqui a pouco, hoje to com disposição..."

Terminaram o jantar. O menor correu para o quintal. O mais velho e a do meio foram para seus quartos. A luz do primeiro logo se apagou, no segundo ouvia-se barulho de portas abrindo e fechando, coisas sendo arrastadas.
Na suíte ela nada queria, mas ele sabia como fazer...

O dia

É irônico como fazemos planos contando com a coragem que não temos. Como planejar investimentos ou viagens com o dinheiro da loteria que ainda nem foi sorteada, nos iludimos provisoriamente de que as chances de concretizarmos aquilo que pensamos são reais, dando-nos um prazer fugaz.

O dia amanheceu e quem primeiro levantou foi a do meio. Começou a recolocar tudo no lugar, não queria que ninguém visse suas coisas reunidas para um fuga que nunca aconteceria. Não, ela não tinha coragem. Trocar todo o conforto e vida fácil que tivera até agora para se aventurar com o fulano com quem andava saindo a menos de um mês. Por mais intensas que sejam as paixões adolescentes, raras são as vezes em que vencem as condições e estruturas familiares.

Ao chegar à firma o pai é apresentado ao ciclano de tal, metade de sua idade, filho do vizinho do cunhado do dono da empresa, que começaria naquele dia seu trabalho na gerencia, no cargo deixado pelo Jorge. Adeus casa na praia. Adeus sonho da esposa.

A mãe por sua vez até parou na frente do prédio do beltrano. Sabia que ele estaria lá. Pensou durante uns minutos, começou a suar frio. O porteiro a olhava curisoso. Ela deu um passo a frente, a expresão em sua face se fechou, uma lágrima caiu, ela desatou a correr por uma direção qualquer. Outras, e muitas lágrimas cairam. O porteiro nada entendeu.

O mais velho resolveu adiar a conversa, precisava preparar-se. E afinal de contas, vai que o teste falhou! Ela falou que faria outro. Isso mesmo, era preciso esperar, e se preparar. O dia seguinte é que seria importante. Hoje não, hoje o dia é para os planos...

No meio do dia o menor volta da escola para casa, passa pelo quintal e sente um cheiro nada agradável. "Preciso limpar antes que alguém veja". O resultado do desarranjo intestinal do Galileu mostrava que o intento não menos importante, no mundo do caçula, encontrou seu meio de acontecer na inocente e autêntica coragem, inerente aos infantos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

501 A

Ontem, após finalizar um pratão de arroz, feijão e frango ouvi outro perguntar se eu tinha comido alface.
Antes de ontem, um colega meu de sala achou graça de um de nós, que enquanto lhe dava carona ligou para casa pra saber se os demais já haviam jantado.
Há quase um mês, três de nós fomos assistir à primeira comunhão do outro que resta.

Há pouco menos de dois anos, ao acordar acendi a luz do quarto e me deparei com duas folhas de papel sulfite dobradas sobre meu criado-mudo. Antes de desdobrá-las passei os olhos ao redor do quarto e vi as malas prontas: Estava indo embora.
Ainda sentado na cama resolvo abrir o papel e nele leio palavras carinhosas e encorajadoras de minha irmã. Depois de terminar a carta, entro no banheiro, ligo o chuveiro, sento na patente e apesar do nó na garganta as lágrimas me escapam. Começo a sentir ali a falta da minha família.
Mudei-me sozinho de São Paulo para Florianópolis para fazer faculdade. Iria deixar de ver as pessoas com as quais convivi durante vinte anos. Certamente não seria fácil.
Quando aqui cheguei, fui morar com um amigo de São Paulo e mais dois amigos dele do curso. Passado meio ano, um deles se mudou e outro amigo meu de São Paulo passou na faculdade daqui e veio morar conosco. Continuamos em quatro.
O começo como previsto foi difícil. Apesar de todas as festas e novidades da vida universitária, nos primeiros meses a saudade de casa era quase insuportável e eu não passava um dia sem fazer a contagem regressiva para o próximo feriado prolongado, quando voltaria a ver a família.
E então veio o inevitável. Passa-se o tempo e criam-se raízes. É a rotina (que você lutou tanto pra conseguir), as pessoas que convivem com você e que estão na mesma situação, com as quais você se identifica e, principalmente, o nascimento de uma nova família.
Longe de mim querer comparar minha família lá em São Paulo (meus pais e minha irmã) com esses marmanjos que mal tomam banho e dividem a casa comigo aqui em Floripa. É muito confortável deitar pra dormir a noite e lembrar que tenho uma família que me ama e que sente minha falta lá longe. Que sempre que eu voltar, vou encontrar a cama pronta, vou acordar e ter o café na mesa, os abraços, os carinhos, as broncas e tudo mais.
Mas acontece que família é um troço doido, que na minha concepção tem muito a ver com sentimento, com valores, com respeito e admiração recíproca (apesar dos pesares). É engraçado atribuir a esses três manés que moram comigo, que nem sabem direito o que querem da vida, essa palavra tão forte.
E quando digo que é um troço doido, é doido mesmo. Na maioria das vezes parece que a gente tá lidando com um irmão, mas por vezes, um ou outro faz o papel de pai e se der na telha, até de mãe. E haja paciência quando isso acontece, o pessoal interpreta à altura.
O que faz desses três uma família pra mim? Tentarei explicar:


É sair reclamando das luzes acesas pela casa, perguntando se o pai é sócio da Light..
É acordar cedo de domingo e chamar pra assistir a Fórmula 1.
É regular o refrigerante por ver o outro engordando sem parar.
É sentir vontade de voltar pra casa ao final do dia só pra falar e ouvir abobrinhas.
É brigar pelo melhor espaço no sofá na hora do filme.
É emprestar e pegar dinheiro e nunca ter certeza absoluta do tamanho da dívida.
É querer manipular o rádio do carro.
É ir à missa junto.
É brigar pela panela mal lavada (ou não lavada) na vez do outro de lavar a louça.
É ver o outro dormindo no sofá há duas horas enquanto deveria estar estudando e ainda lhe dar mais um prazo de quinze minutinhos antes de acordá-lo para os deveres.
É ver o outro pegando uma gata e sentir inveja.
É ver o outro pegando uma baranga e sentir inveja também.
É ver de longe o outro, feliz da vida, dando risada de uma coisa qualquer e se sentir bem com isso...

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Na feira

(Sempre achei bacana as dedicatórias. Tem os que dedicam músicas, gols, livros. Há 1 ano, um grande amigo dedicou-me a conquista de um troféu. Retribuo, dedicando-lhe esta crônica, a qual sei que é, dentre as minhas, a sua favorita, e também aos demais amigos que estavam presentes palpitando sobre os alfaces, numa das situações que lerão a seguir, e que dias depois, junto comigo, foram confundidos com os integrantes de uma banda sertaneja, história que estou devendo há algum tempo. Por ora, mais uma do fundo do baú...)


Fui à feira e comprei quatro caixas de morango, uma dúzia de laranjas, duas pencas de banana, algumas verduras, um pastel e um caldo de cana.
Não, não se trata daquela velha brincadeira em que a gente inventa que foi na feira comprar coisas e quando chega a sua vez de falar, você tem de lembrar do que todos compraram até então e dizer alguma coisa nova, e quem não acertar a ordem das coisas tem de pagar uma prenda. Hoje eu realmente fui à feira, com meu pai.
Não tenho prática na escolha de vegetais e também não sei o que seria um preço justo para cada um deles, portanto minha função era ajudar meu pai a carregar as sacolas. E, ao final da empreitada, a merecida recompensa: pastel e caldo de cana.
A feira em questão acontece toda-terça feira num bairro de São Paulo onde moro desde que nasci. O mecanismo da feira é bem distinto de uma outra que conheci numa cidadezinha no noroeste do Paraná. Lá a feira começa religiosamente as 17h, inclusive com o soar de um apito, que permite que as pessoas iniciem suas compras.
Minutos antes do soar do apito, algumas pessoas já se prostram em frente à barraca do alface, produto provavelmente escasso na região, haja vista a concorrência para apanhar o seu...maço?
Abro aqui um parenteses para comentar uma questão levantada naquela ocasião. Justamente discutindo a disponibilidade de tal hortaliça, estávamos quatro amigos e eu nos indagando sobre qual o nome que se dá para um conjunto de alface. Cada um tinha seu palpite, alguns razoáveis e outros completamente impossíveis e fora do bom senso. Eis as opções:
1 – Pé de alface
2 – Cabeça de alface
3 – Maço de alface
4 – Moita de alface
5 – Buquê de alface (meu palpite)
Como não chegávamos a um consenso, fomos pedir opiniões alheias e o placar ficou mais ou menos empatado entre pé de alface e maço de alface. Mas no fundo, isso é coisa regional, tenho certeza de já ter ouvido por aqui os feirantes das barracas de alface gritando ´´Dois buquê é um real!´´ ou algo que o valha.
A feira daqui é muito diferente. Lá, apesar do inicial fuzuê causado pela compra de alface, a feira em si é silenciosa, ninguém grita nada, todos sabem onde achar o que querem, até porque não há lá muitas opções. Aqui, primeiramente, a não ser que esteja muito enganado, não há apito ou sirene que nos diga quando podemos iniciar as compras. É bem verdade que nunca compareci ao inicio da feira, que aqui é de manhã bem cedinho, mas ninguém nunca me falou sobre tal peculiaridade.
O que pra mim melhor caracteriza a nossa feira, ou, no meu mundo bolha de antigamente, todas as feiras do mundo (ainda acredito que a maioria seja assim) é aquele furdúncio e desordem causados pelos transeuntes que fazem de seu próprio trânsito algo mais caótico que as avenidas indianas que vemos as vezes na televisão e a gritaria protagonizada pelos feirantes.
- UMA DÚZIA DE LARANJA È UM REAL!
- OLHA A BANANA PRATA, SETE REAL DUAS DÙZIA! QUEM VAI LEVÁ??
- um real o saco de alho, um real o saco de alho.
- OLHA A MANCA ROSATA, TUAS, TOIS REAIS!
Como não tinha obrigação de ficar escolhendo nada, enquanto esperava meu pai, eu ficava atento às chamadas dos feirantes. O cara das laranjas era bem engraçado, dizia ele, além da frase já citada – UMA LARANJA DÁ UM COPO DE SUCO! OLHA O TAMANHO, PARECE UM CÔCO! – ou ainda – LARANJA ASSIM VOCÊ NÃO COMPRA NEM NO MAPPIN!
Eu nem me lembrava que existia uma loja chamada Mappin, e que eu me lembre lá não se vendia esse tipo de mercadoria. De qualquer forma, via-se que o feirante fazia de seu oficio uma diversão, e levava jeito para a coisa.
O homem do alho era um velhinho ambulante, que parecia mais estar fazendo um comentário ultra-secreto com seus botões do que tentando vender os alhos que estavam empacotados em suas mãos. Já o sujeito da manga, apesar de trocar o ´´g´´ pelo ´´c´´ e o ´´d´´ pelo ´´t´´, era o único ali que sabia usar o plural.
Além dos feirantes, inevitável não reparar nos compradores, muitos deles conhecidos meus. Esta feira fica perto de uma casa que eu morava antigamente, há uns 10 anos. Desde que me mudei de lá, raramente ia à esta feira. Mas estavam lá, meu antigo professor de música, a senhora que cantava no coro da igreja, a velhinha que faxinava os corredores de uma escola dos arredores onde estudei da 1ª á 3ª série do fundamental, e tantos outros que eu conhecia só de vista.
É muito mais fácil para alguém reconhecer uma pessoa que passou dos 40 anos para os 50, ou dos 54 para os 64, do outra reconhecer alguém que passou dos 10 para os 20. Por isso acho que reconheci tanta gente e, surpreendentemente, apenas a senhorinha da faxina me reconheceu. Veio falar comigo, perguntar como eu estava, perguntou da familia, inclusive do meu avô, que falecera há 8 anos.
Passam-se tantos anos e as coisas não mudam. Pra dizer bem a verdade algumas mudaram sim: lembro-me que antigamente havia um pessoal que vendiam fitas K7 na feira; hoje eu vi dois ou três sujeitos vendendo DVDs (2 por 5 real). Os pasteis; lembro-me de ficar na duvida cruel (queijo, carne ou pizza, piorando drasticamente quando adicionaram os de frango com catupiry e palmito). Hoje atendem pelos nomes Casal 20 (queijo com carne e azeitona), Carioca (frango com palmito e catupiry), além dos ´´tradicionais´´ de 4 queijos, camarão com catupiry LEGITIMO (afinal de contas hoje em dia tem muito pilantra por aí botando requeijão e dizendo que é catupiry) e vários outros.
Apesar da barulheira, foi uma manhã bastante agradável, nostálgica. O grande prazer de perceber que pode passar o tempo que for, podemos conhecer novos lugares, aprender coisas novas, adquirir nova visão do mundo, e por vezes nos iludirmos achando que entendemos muita coisa sobre tudo, lamentando estar tudo indo para o buraco, mas haverá sempre uma antiga feira para nos lembrar que a essência continua a mesma; na dinâmica das relações, é ali que encontramos sua raiz. E assim, nos proporcionar algum tipo de alívio.

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.