terça-feira, 23 de novembro de 2010

Roleta Russa

Há algumas semanas estava de plantão na central de transplantes, onde estagio, quando lá pelas tantas recebemos uma notificação de um potencial doador oriundo de Chapecó (cidade do oeste catarinense). Um jovem de 21 anos, estava para iniciar os testes comprobatórios para morte encefálica (condição sine qua non para ser doador). A causa da morte: ferimento por arma de fogo, o motivo: Roleta Russa.
Incredulidade, indignação, pena. Uma mistura de sentimentos passava por todos nós ali da central. “Como é que alguém ainda faz uma coisa dessas hoje em dia?” Supusemos que o garoto deveria estar sob efeito de álcool, ou alguma droga, querendo justificar de alguma forma o que parecia algo completamente sem cabimento.

Estudando medicina nos deparamos quase diariamente com pessoas que voluntária ou involuntariamente, acabam abreviando suas vidas. Pessoas que ingerem pesticidas, veneno para rato, que tomam dois litros de cachaça por dia, que comem muito, e mal, não se exercitam, que fumam dois maços de cigarro por dia, ou um, ou meio. A diferença entre elas é apenas o tempo em que cada um desses mecanismos leva para dar cabo a vida do indivíduo.
Durante o curso acabei me envolvendo bastante com a área de pneumologia, em especial com o tema tabagismo. Faço parte de um grupo que está desenvolvendo um estudo sobre o assunto, e já participei de cursos de abordagem a pacientes tabagistas, entre outros. Embora haja grande conscientização por parte da população sobre os malefícios do tabagismo, sua cessação continua sendo um enorme desafio.
Conheço gente inteligentíssima, tenho amigos pós-graduados e até professor de pneumologia que fuma! E como é que se faz a abordagem de pessoas como essas, quando se trata de convencê-las a parar de fumar? O discurso que eu usava era a seguinte: “Você deve saber até melhor do que eu que cigarro faz mal, não vou ficar te azucrinando, mas se um dia você estiver querendo parar, pode me procurar que eu te ajudo”. Certo? ERRADO!
O grande problema é que muita gente não consegue visualizar o dano a longo prazo que o cigarro faz. Não é a figurinha de um pulmão podre no verso do maço que vai detê-los. Devemos fazê-los crer que (e aqui vai uma forçada da barra) que fumar é praticamente uma Roleta Russa. Parece bastante dramático querer comparar um maço de cigarros a um revólver, mas reparem bem:
não só de câncer de pulmão morre um tabagista (e a chance de um tabagista desenvolvê-lo é 1 em cada 10). Existe também o câncer de boca e de garganta. Além disso, existe a DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica) que segundo projeções, será a terceira maior causa de morte no mundo em dez anos. Menos de 15% dos fumantes desenvolverão DPOC, mas quase 90% dos que possuem essa doença, são tabagistas. Fumar é um dos maiores fatores de risco para o infarto, entre inúmeras morbidades que são agravadas pelo seu uso.
Some todas essas probabilidades e verá que a chance de um fumante morrer por causa de seu vício é maior do que o 1/6 do projétil de um revolver encontrar sua cabeça se resolver “brincar” de roleta russa, com o agravante que você não morrerá instantaneamente, mas passará anos com uma qualidade de vida sofrível, sendo torturado diariamente física e mentalmente por causa de sua condição.

Pare e reflita que hoje nos parece um absurdo que já tenha sido permitido fumar dentro de aviões. “Nossa, as pessoas fumavam dentro e aviões!”, diríamos nós. Daqui um tempo, graças a essa nova lei que proíbe fumar em lugares fechados, em vigor em cidades como Florianópolis e São Paulo, acredito que estaremos dizendo “Nossa, as pessoas fumavam dentro das baladas!”. Penso que devemos ser otimistas e audaciosos, trabalhando para que um dia se seja possível que as futuras gerações numa conversa qualquer possam dizer: “Nossa, as pessoas fumavam!”.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Tio Giba

Espaaaalmaa Zéééttiii!!!
O ano devia ser 93 ou 94. O palco do jogo, um estreito corredor de um sobradinho no subúrbio paulistano, o Zetti na verdade era eu, com algo entre 6 e 7 anos, me estropiando no chão de concreto a cada ponte que dava para alcançar as cobranças de faltas batidas por meu Tio Gilberto, que interpretava Evair, Zinho, Rivaldo, Roberto Carlos e ao mesmo tempo atacava de Luciano do Valle na narração.
O tio Giba é o ser humano mais apaixonado por futebol que já conheci. Mais por obra dele e de minha tia Déa do que de meu pai que hoje torço pelo verdão. Há fotos de quando eu era bebê, no carrinho, vestindo camisas verde e brancas maiores que meu corpo inteiro, “coisa do seu tio Giba”.
A casa do Tio Giba é toda decorada com objetos do palmeiras, na cozinha canecas com o símbolo desenhado, adesivos na janela, na sala, pôsteres enquadrados com as formações campeãs dos títulos brasileiros da década de 90, campeonato paulista, libertadores. Há ainda uma ou outra caravelinha espalhada pela casa, aludindo ao fato de que, como cedo me ensinara tio Giba, Palmeiras e Vasco da Gama são torcidas irmãs.
Tio Giba respirava futebol. Quando presente nas festinhas da família, mobilizava grande parte dos parentes (que entendiam pouco ou quase nada de futebol) em análises complicadíssimas sobre formações táticas, características individuais de cada jogador, rememorava com vivos detalhes atuações antológicas de determinado craque, escalava times vencedores. Longe de ser chato, Tio Giba no último natal escalou o time do palmeiras completo que perdeu para o Inter de Limeira a final do campeonato Paulista de 1984. A família toda se entristeceu com a derrota.
Conta meu pai que houve um tempo em que tio Giba e Tia Déa percorriam o estado todo atrás dos jogos do verdão, tradição esta que hoje é mantida por seus filhos e netos. Segundo a tia Dea, o Juninho foi até Uberaba dia desses só pra assistir a um jogo.
Tio Giba além de torcedor fanático era também tapeceiro. Por ocasião da construção de um novo quarto na casa onde eu morava, lá nesses idos de início da década de 90, entre uma ou outra grande defesa de Zetti, lembro-me dele dizendo “Pedrinho, vou fazer uma poltrona de estofado verde pra você por no seu quarto novo”. Achei aquilo o máximo, na minha cabeça de menino, uma poltrona devia ser algo imponente. E ainda verde! Todos saberiam que eu era um torcedor do palmeiras muito respeitável.
Por muitos domingos eu esperei no portão de casa o Chevette cor de creme do Tio Giba e da Tia Déa trazendo a notícia de que a poltrona havia ficado pronta, coisa que nunca aconteceu, e eu fui esquecendo aos poucos. Aos poucos também foram rareando as visitas do Tio Giba à nossa casa. Tia Déa, que jamais deixou de nos visitar, comentava que Tio Giba tornara-se uma pessoa cada vez mais reclusa, mal saia de casa. Assim mesmo, nas festas de final de ano, ocasião quase exclusiva em que o via, ele me parecia sempre o mesmo, falando de futebol, sua risada divertida, fala mansa, barba por fazer.

Mudei-me para Florianópolis há mais de três anos e desde então acho que vi o Tio Giba duas vezes (uma delas no natal que ele contou da final do campeonato de 1984). Falo com meus pais quase todos os dias pelo telefone, e há cerca de um mês, lembro-me de minha mãe comentando que a Tia Déa disse que o Tio Giba andava com hábitos estranhos, que outro dia havia acordado no meio da madrugada e começou a trocar as gavetas do guarda-roupa no escuro.
Poucos dias depois ligo lá pra casa e dizem que o Tio Giba havia caído sei lá onde, batido a cabeça e levado ao hospital. Lá acabaram por detectar um tumor no SNC. Daí pra frente as informações começaram a ficar desencontradas, até porque é difícil mesmo as pessoas entenderem o que se passa, e muitas vezes se negam a enxergar a gravidade da situação. A única coisa que eu sabia é que os médicos diziam ser inoperável.
Por ocasião do último feriado, voltei para São Paulo, e ainda planejando com meu pai a programação para aqueles dias, ele perguntou “e o que você acha de ver o Tio Giba?”. Na terça-feira pela manhã, eu meu pai vestimos camisas do palmeiras (tinha certeza que o tio ia se alegrar) e fomos visitá-lo. Chegando lá, vi o tio deitado na cama, com uma sonda no nariz, emagrecido, muito emagrecido, olhos abertos fixos no teto, trajando uma camisa do Palmeiras e uma calça do Vasco.
Não tive coragem de chegar e perguntar “Tudo bem?”. A resposta seria “Tudo bem”, porque invariavelmente as pessoas respondem isso em qualquer situação. “E aí tio, como é que tá o Palmeiras?”, foi como decidi começar. Ele levantou o polegar num sinal de “jóia”, e bem lentamente foi virando a mão para baixo, abriu um sorriso e disse “vai mal, Pedrinho”. Falei mais algumas coisas, e então meu pai começou a falar, oportunidade que tive para perguntar para a Tia Dea qual era de fato a situação.
Ela me levou para outro quarto, me deu alguns exames para ver, e enquanto eu lia o laudo “Astrocitoma, comprometendo os lobos temporal, frontal, occipital, etc, etc” foi me dizendo que os médicos disseram que não iam operar, pois a sobrevida seria de menos de um ano, e em estado vegetativo, e só com a quimioterapia a sobrevida seria de cinco meses. Eu conseguia sentir em mim o nó na garganta dela, pensei em abraçá-la, mas foi quando ouvi: “Pedrinho, Pedrinho”. Era meu tio me chamando.
Voltei para o outro quarto. Quando me viu, ele estendeu a mão esquerda no ar, segurei-a e ele levou até junto a sua face, beijou-a e com os olhos marejados disse “Pedrinho, Pedrinho, gosto tanto desse menino!”. Eu não sabia muito bem o que fazer, apenas disse “Tio, também gosto muito do senhor” e retribuí-lhe o beijo na mão.
Depois de curto silêncio meu pai falou que tínhamos de ir embora, pois em breve eu pegaria vôo de volta para Florianópolis. Disse ainda “Giba, fica tranqüilo que já já você vai sarar”, beijou-lhe a testa e fez sinal para irmos embora. Descíamos os três as escadas quando ainda ouvimos o Tio Giba dizer “Manda um beijo para a Isadora” (minha irmã).
Foi a última vez que vi meu tio. Ontem a noite meus pais telefonaram dizendo que ele havia falecido. Meu pai, sujeito de rara sensibilidade fizera questão (apesar de não ter transparecido) que eu visse meu tio aquele dia, pois imaginava que pudesse de fato ser a última. A Sociedade Esportiva Palmeiras perdeu um grande torcedor, o maior que conheci, e eu, um tio querido, do qual só tenho boas lembranças. Quando quiser me lembrar dele, vai ser com carinho e saudade que me virão em mente o Chevette cor de creme chegando no domingo, ou sua voz inconfundível gritando “Zéééttiii”.

domingo, 19 de setembro de 2010

Pequena pausa cotidiana para as eternas reflexões

Acabo de receber o motorista Hudson, que veio pegar um rim direito para levar ao aeroporto, de onde o órgão seguirá para Chapecó, onde será transplantando. À minha frente está meu notebook, onde escrevo, e através do qual agora toca The Beatles. À minha esquerda um bloco de páginas xerocadas do caderno de otorrino de uma colega de sala, devido a eminência da prova desta matéria; do lado esquerdo o “Guia do viajante independente pela Europa”, aberto no mapa de Londres e, um pouco além, um papel com o telefone de mais de trinta hospitais de Santa Catarina, aos quais há pouco telefonei indagando sobre novas suspeitas de morte encefálica. Estou, portanto, num dia típico do meu estágio na central de transplantes.
Um pouco além, noutra mesa, uma das enfermeiras que trabalha aqui na divisão técnica monta uma documentação relativa a uma doação de córneas, enquanto me lembro que estou perdendo uma festa universitária por conta deste plantão de 24h. A esta hora (22h30) está boa parte de meus amigos fazendo o esquenta para a festa (que será open bar, fato que não justificaria em absoluto a suspensão do tradicionalíssimo ritual que antecede todas as festas), enquanto paro e reparo na figura da enfermeira que encontra-se a poucos metros de mim.
Loira, algo entre 1,65 e 1,70, ligeiramente gordinha, calculo estar chegando nos 40, solteira, sem filhos. Não se trata do que vocês estão pensando. Juro. Estou apenas imaginando se era algo parecido com montar documentação relativa a doação de córneas numa sexta-feira a noite o que ela imaginava estar fazendo ao atingir os 40 anos, quando tinha a minha idade. Não que isso seja muito ruim, claro que não, mas é que agora ouvindo o George Harrison solando em “Till There was you”, um dos primeiros solos que aprendi quando comecei a tocar violão, fico me imaginando tocando junto ao meu filho (que também quererá tocar violão e gostará de Beatles) numa sexta-feira a noite quando tiver por volta dos 40.
Não sei se minha companheira de plantão é solteira e não tem filhos por opção. Outra enfermeira aqui da central está para ganhar seu primeiro filho, aos 32 anos, solteira. Enfim, o fato é que elas estão me levando a refletir sobre nossos desejos e frustrações. Eu por mim mesmo já sou um pensador nato, cheio de indagações e questionamentos. Andei acessando textos que escrevi há cerca de cinco anos e me deparei com os mesmos tipo de reflexão que tenho até hoje. Mesmo tendo mudado de cidade, estar há mais de três anos na faculdade e neste período ter conhecido dezenas de novas pessoas com uma rica pluralidade de opiniões, a única coisa que acontece é a adição de novas perguntas sem que as antigas sejam respondidas. Quanto mais se raciocina, mais longe parece ficar a solução. Não à toa inventaram a dialética.
Se tudo acontecesse conforme eu gostaria, quando eu tiver o dobro da minha idade, num domingo ensolarado como promete ser depois de amanhã, eu levaria meu(s) filho(s) à Arena Parque Antártica assistir o verdão. Veria-os ensaiar os primeiros acordes no violão quando chegasse exausto do trabalho no meio da semana, tocaria junto com eles uma outra dos Beatles, fazendo parcerias a la Lennon e McCartney, e planejaria viagens inesquecíveis ao lado da mulher com quem decidira passar o resto dos meus dias.
Bonito, não? Guardados os gostos pessoais, seus planos são parecidos? Entretanto, olhe ao seu redor e veja o saco de frustrações que é a vida. Pode ser que tudo dê certo, e nos manteremos sempre otimistas. Mas parece ser necessário iludir-se periodicamente para que possamos aguentar a ideia de que grande parte daquilo que planejávamos não aconteceu; convencendo-se de que há coisas tão ou mais interessantes de se viver, e que você só se deu conta delas através da oportunidade gerada pela negação dos sonhos não realizados. No meio disso tudo confundem-se resilientes e conformistas, e não há muito como escapar. É estatístico.
Olho para a pilha de xerox e lembro que independente dos meus futuros rebentos, hoje preciso aprender a reconhecer e tratar uma otite, enquanto o aparelho de fax apita a chegada de mais uma notificação de doação de córnea e cresce minha inveja de não estar curtindo a festa com meus amigos. Ainda assim, o Ringo entoando “With a little help from my friends” me lembra que embora ainda não conheça a mulher com quem decidirei viver o resto dos meus dias (assim imagino), em breve farei uma viagem que sem dúvidas será inesquecível. Voltemos ao mapa de Londres...

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Num sobradinho da cidade grande

Chovia muito. A menina estava indo tomar banho quando a campainha tocou. Não esperava visitas, o cachorro foi à janela e com latido característico informou que tratava-se de pessoa estranha. “Se for importante, vai voltar depois”, pensou a menina ao fechar a porta do banheiro. Mal tirava a camiseta quando a campainha disparou, o cão intensificou os latidos e, mesmo com a chuva torrencial que caia lá fora, pode ouvir o som do portão sendo arrombado.
A menina então se vestiu e foi esconder-se no quarto do irmão. “Vai, vai, vai”, diziam vozes perto da porta da sala. O cão agora se esgoelava, relâmpagos se encarregavam de dramatizar a situação. A menina então pega o telefone e disca o número da polícia. “Para realizar seu cadastro disque 1” responde a gravação do outro lado da linha, enquanto rosnados desesperados do cachorro anunciavam que ele e os assaltantes encontravam-se cara a cara.
Passos pelas salas, corredores, subindo as escadas, a menina que obviamente desistira de informar a polícia, tenta chamar atenção do vizinho do lado jogando canetas em sua janela. Lá se vai a coleção de canetas do irmão: a alemã e a espanhola que ganhara de amigos viajantes, a de fabricação limitada comemorativa do centenário de um banco, a americana cromada. Nenhuma delas foi capaz de chamar atenção do senhor aposentado que dormia as duas da tarde.
Os assaltantes entram no quarto da menina, se apossam de algo e rumam para o quarto do irmão. Uma tênue sombra se projeta pela porta do quarto e a menina corajosamente se impõe:
“Quem tá aí? Eu já chamei a polícia” - Não houve contato visual, e neste momento muitas coisas aconteceram simultaneamente. Objetos sendo derrubados, nem dava pra saber quantas pessoas tinham na casa, se duas, três ou quatro. Do cachorro não se sabia mais, podia ter infartado, sido assassinado, ou simplesmente desistido do combate, mas não emitia sons. Ouvindo os passos atrapalhados a menina então muda de tática e passa a gritar por socorro pela janela do quarto. Muito alto, chama atenção da vizinhança toda. Apesar da chuva batendo nas calhas, de trovões e das janelas fechadas, conseguiu ser ouvida. Dificil era entender o que se passava. Uma senhora na rua de baixo tentava convencer a mocinha que via pela janela: “não pula!”, enquanto agora, só agora, o vizinho do lado aparece: “Não saia daí”.
Os passos pela casa cessam, um carro parte, a campainha toca. A menina desce e recebe o vizinho de olhos arregalados, que educadamente preferiu esperar do lado de fora da casa para salvá-la. Ele pergunta-lhe pelo ocorrido enquanto rumam para a cozinha. Lá chegando apenas o que se vê é o chão inundado pela urina do cachorro, que não se encontrava em lugar nenhum. A menina cai em prantos, temendo pelo pior. Nisso percebe o cachorro tremendo feito vara verde debaixo da mesa. A menina chora ainda mais alto por saber que ele está salvo. O vizinho cumpre seu papel “vou preparar-lhe uma água com açúcar”. Outros vizinhos chegam.
O celular da menina toca “Porque você me deixou falando sozinho tanto tempo no MSN?” O cachorro agora quer morder os vizinhos e a menina ainda emocionada por vê-lo bem não consegue se justificar ao celular. Desliga e liga para o seu pai, que estava tratando de aguentar mais um dia o trabalho que detesta, para ter seus bens roubados e a vida de sua filha posta em risco.
Vizinhos curiosos estão muito preocupados em saber detalhes do corrido, alguns sobem as escadas para conhecer melhor o interior da casa. A menina toma o restinho da água com açúcar que o vizinho do lado acabou bebendo sem querer. O pai e uma viatura da policia chegam sincronicamente. De noite chega a mãe, medrosa como é, terá anos de perturbação e insônia por causa do episódio. O cachorro deve ter envelhecido uns cinco anos por conta da coisa toda.

Horas depois, sentados em silêncio, esperando a perícia, a família se assusta com o telefone que toca. “Chamada a cobrar, para aceitá-la, continue na linha após a identificação”. É o filho que mora longe, que mais um vez será poupado das tristezas e preocupações da família, como na vez que chegou de viagem e seu pai mostrou um cálculo retirado numa colecistectomia por videolaparoscopia realizada um mês antes, e que guardava no armarinho do banheiro.
Fala com toda a família, todos estão bem, a mãe colocou aparelho nos dentes, o pai tá de carro novo, a menina vai viajar. Não querem preocupá-lo, ele está muito longe e nada pode fazer, pensam que não há necessidade de compartilhar o legitimo sentimento da família. Descobrirá o que aconteceu somente quando vir o cadeado novo no portão. Resignado, pensará que precisa aproveitar bem a companhia daquelas pessoas queridas, pois poderia ter sido diferente.
O último a falar desliga o telefone, logo a perícia chega, faz o que deve ser feito e vai embora. Então, todos sobem para seus quartos, apagam as luzes para uma noite em claro. Ainda chovia muito.

sábado, 10 de julho de 2010

Na contagem regressiva

E se você ligasse a televisão no noticiário, fosse ler seu e-mail, ou estivesse dirigindo do trabalho para casa e ficasse sabendo pelo rádio que descobriu-se que o mundo acabará em 24h. E que não se trata de nenhuma previsão de Nostradamus ou Walter Mercado, mas sim de alguma coisa perfeitamente crível. O que você faria?
Isso já deve ter passado pela cabeça de quase todo mundo. A ideia já foi explorada em outras crônicas, novelas, canções, e naturalmente, também tenho minha teoria: Acho que se o Armargeddon fosse confirmado, seja lá qual fosse o desfecho, as pessoas iriam reagir basicamente de duas formas e o mundo se bipolarizaria. De um lado haveria a maior orgia já vista no planeta (juntamente também, devido ao nervosismo e falta de concentração inerentes a ocasião, o maior índice de broxamentos já registrado) e do outro, razoavelmente menor, haveria gente orando, pedindo um final misericordioso, se arrependendo e tentando garantir absolvição pelos pecados terrenos, ou algo que o valha. Eu tentaria juntar a galera e organizar a “festa do apocalipse”. Haveria também aqueles se excederiam no “esquenta” para o fim dos tempos e “queimaria a largada”, acabando-se antes do resto da turma.
Seria possível também que por um acesso de ansiedade, além de serem pegas totalmente desprevenidas, as pessoas não soubessem muito bem como lidar com a situação e não fizessem nada de especial. Outros, por preguiça, se convenceriam de que aproveitaram bem tudo o que tinha para ser vivido, e se contentariam em tomar sua última cervejinha assistindo da varanda a indiferença dos cachorros e passarinhos, que teriam o privilégio de não entenderem nada do que estaria se passando.

Enfim, o mundo um dia acaba, seja para todo mundo de uma vez, ou para uma pessoa só, e a isso chamamos de morte. Mas saber com exatidão quando vai acontecer deve ser algo muito tenso.
Assisti dias atrás a um filme que retratava os últimos dias de um sujeito no corredor da morte. Quando isso acontece, eles tem direito a algumas “regalias”, entre elas pedir qualquer coisa para sua última refeição. Refleti bastante a respeito, caso estivesse nesta situação. Fiquei em dúvida se pediria arroz, feijão e carne moída, com bacon e azeitonas (sem caroço), feitas pelo meu pai, ou um pastel de feira, de carne com queijo, acompanhados de um grande copo de caldo de cana com limão. Parece uma reflexão besta, e realmente deve ser, mas me fez pensar sobre os pequenos prazeres do dia-a-dia, e a importância que ganham imaginando-se situações-limite, como esta. É um exercício mental bacana de se fazer, de fato chega-se a algumas conclusões.
Ainda pensei que se a escolha fosse a carne moída, ainda pediria uma cervejinha, de preferência uma Original ou Serramalte, só que nesta ocasião eu teria de escolher alguém para dividir o momento, pois assim como parte do prazer de fumar está em manusear o cigarro (que fique claro que eu não fumo, mas já estudei bastante sobre o assunto), acender o isqueiro, e ver-se baforando a fumaça, parte do prazer de tomar uma gelada (sim, eu bebo; sem mais detalhes) está nela ser de garrafa, de deitar o copo para que não faça espuma enquanto a despeja (caso não seja uma longneck e você beba no bico) fazer um brinde a uma coisa qualquer (e aí que entra a companhia), e sentir a sensação única dela descendo pela garganta no(s) primeiro(s) gole(s).
Agora imagine-se tomando sua última cerveja.

Entretanto, há uma situação oposta a essas sobre as quais conversamos até agora. A de você saber que alguém vai passar dessa pra melhor. É “muito mais fácil” (e aqui essas aspas vão muito bem), saber que alguém de quem você gosta vai morrer, nem que seja daqui a pouco, do que se isso acontecer de supetão. Pois assim você terá o direito de se redimir, de quitar as diferenças, de dizer o quanto gosta da pessoa, entre todas as outras coisas que te deixará com a consciência em paz quando ela se for. Diferente dessas tragédias que acontecem por aí. Um bêbado atravessa a estrada, pega a contra-mão e mata alguém que você conhece, e que você por algum motivo tolo brigou da última vez que viu, e por isso vai ficar um bom tempo com dor na consciência, se perguntando porque ligava para coisas tão pequenas, e não aproveitava melhor o tempo que tinham juntos.
Não digo que devemos fazer provas de amor toda vez que as pessoas que amamos saem pela porta de casa, imaginando que podem ser atropeladas na próxima esquina. Digo apenas que se nos importássemos menos com detalhes e mesquinharias, fossemos um pouco mais capazes de dizer coisas agradáveis e sermos gentis, estaríamos melhor prevenidos nesses casos de desastre. Utilizando-se desses artifícios, e acrescentando um pouco mais de coragem e ousadia, mesmo quando a situação não for tão favorável, ter sonhos maiores e se permitir tentar alcançá-los, quem sabe se um dia a coisa toda for mesmo acabar assim de repente, não poderemos nos dar o luxo de simplesmente sentar e olhar os cachorros e passarinhos.

sábado, 3 de julho de 2010

Novos Horizontes

Engraçado a quantidade de pessoas naturais de diferentes estados brasileiros que reclama para si a característica de não ter sotaque. Claro que isso não vale para cariocas, gaúchos ou a turma do nordeste em geral, mas bastante gente realmente acha que o povo ao qual pertence possui uma cadência “neutra” quando fala.
Semana passada conversei sobre isso em duas situações diferentes: a primeira, tomando chop de vinho junto a um casal de amigos brasilienses e a segunda almoçando no restaurante universitário, num domingo após a missa, com um colega capixaba, e nas duas oportunidades, as pessoas não tinham a mínima dúvida de que não possuíam sotaque algum e usaram a mesma comparação: “Sabe o William Bonner apresentando o Jornal Nacional? É assim que a gente fala”.
“Claro, claro” foi minha resposta, pensando intimamente, como bom paulistano que sou, que definitivamente quem não tem sotaque somos nós. E convicto de que, se bobeasse, o William Bonner tivesse sido criado aqui pela vizinhança.

À parte o sotaque, é interessante também como carregamos pré-conceitos sobre o povo de determinada região, que muitas vezes não confere com a realidade quando de fato conhecemos as pessoas daquela localidade. Nem todo carioca é malandro ou todo baiano é preguiçoso. Nem todo gaúcho tem tendências homossexuais assim como nem todo mineiro só vive de pão de queijo. Isso parece óbvio, mas é inegável que se somos apresentados a um novo colega de trabalho carioca, antes de conhece-lo bem, achamos que ele vai nos passar a perna, se ele for baiano, melhor não pedir favores senão vai demorar uma eternidade para serem feitos; quando você voltar do almoço vai ter uma rede estendida no meio do escritório e, se for gaúcho, ficará com um pé atrás se ele te convidar para tomar uma cervejinha depois do expediente.
Há menos de uma semana fui com alguns amigos num barzinho lá em Floripa e acabamos conhecendo umas moças que estavam na mesa ao lado. Comecei conversando com uma carioca, que afirmava que os paulistas são convencidos e superficiais. “Só olham a casca (“caixxxca”)”, dizia ela. Passamos uns bons minutos conversando, perguntei o que fazia da vida (resposta: “sucesso”), o que estava fazendo em Floripa e sobre o vida cultural do Rio. Perguntei sobre a boemia da Lapa, shows no Circo Voador, Fundição Progresso, sobre a Vila Isabel (gosto muito de Noel Rosa), entre outros. O papo fluía bem, até quando apresentei um amigo goiano, o que causou um grande abalo nos rumos da noite.
“Goiânia? Sério? Olha amigas, ele é de goiânia! Adoro sua terra, o povo de lá, só tem gente boa, mulher bonita...”. Meia duzia de palavras, uma música sertaneja bem dançada e a fatura já havia sido feita. Fiquei refletindo sobre aquele papinho todo de “olhar somente a casca”, resolvi pedir mais um chopinho e me prometi que da próxima vez jurarei que sou de Goiás.

Acho bonito o sentimento que cada um tem por sua terra. Alguns se excedem e acham que só o lugar onde nasceu é que presta. Isso por vezes gera grandes discussões. Todo radicalismo tende a ser um pé no saco, e como disse um conhecido meu certa vez, nunca vale a pena discutir com um chato radicalista: você acaba caindo no mesmo nível mas ele sempre ganha a discussão porque tem experiência.
Mas no geral, as pessoas falam com um orgulho ingênuo sobre suas raízes. Estudando com uma turma na qual há pessoas de vários cantos do país, estou ciente de que tenho muito a conhecer. Alguns lugares nem é preciso conviver com alguém que lhe diga que lá é bacana de se visitar. Costumo dizer que depois de ler Jorge Amado e escutar Dorival Caymmi tenho receio de ir a Bahia e não querer voltar nunca mais. Fernando de Noronha é Hors Concours e Bonito todo mundo que foi também sempre coloca no top 3.
Até hoje não conheci muitos dos clássicos pontos turísticos do país, mas tenho a sorte de ter bons amigos, que me fizeram conhecer lugares talvez tão legais quantos estes clássicos, tanto que estou idealizando uma futura empreitada literária, que será batizada de: “Rumos do Fumaça: Um guia turístico para quem gosta de vassourar”, (aos desavisados, Fumaça é meu apelido na faculdade, e traduzindo: “vassourar” = aproveitar a vida de forma louca e inconsequente), onde serão dadas dicas de como aproveitar bem sua visita à Festa do Pinhão em Lages, Balneário Gaivota no sul catarinense, micro-cidades do noroeste paranaense, a rota do xadrez mineiro, entre outros.
Enquanto isso não acontece, me permito emprestar uma frase de um grande viajante que, por ora, possui coisas mais interessantes a dizer a respeito de alguns assuntos sobre os quais resolvi discorrer por aqui.

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.”(Amyr Klink)

domingo, 6 de junho de 2010

Pré-jogo (Copa 2010)

Falta uma semana para o início da Copa do Mundo. O motivo de maior comoção nacional e demonstrações de patriotismo. Nada contra. Há quem fique criticando o fato de que só nos orgulhamos de ser brasileiros nesta hora, que deveríamos seguir o exemplo dos americanos, que sustentam 365 dias do ano a bandeira hasteada no jardim de casa. Que se realmente amássemos a pátria, não haveria tanta corrupção, desmatamento etc. Passo longe dessa trupe que gosta de cornetear o espírito da nação, o negócio agora é futebol.
Hora de pintar o meio-fio de verde e amarelo, de pendurar bandeirinhas entre os postes de iluminação das ruas, tempo de colecionar figurinhas e nunca completar o álbum, mesmo roubando dezenas do bolo de repetidas dos amigos distraídos (esse é o meu caso; naturalmente, não nos dias atuais). Época dos memoráveis bolões, nos quais na maioria das vezes aquele cara sem noção alguma, que se você perguntar pra que time o cara torce, ele responde “Brasil”, costuma ganhar e deixar a turma que vive acompanhando campeonatos regionais, Champions League e até mesmo o Showbol, que simula centenas de vezes os resultados da Copa desde que sai o sorteio das chaves, extremamente putos da vida.
Passeando pela cidade, vi menos ruas e casas pintadas, menos alegorias e penduricalhos por aí. Acredito que isso seja diretamente proporcional à empolgação do povo com a seleção convocada pelo técnico. Desta vez, não há quem ache que o Dunga acertou em cheio nos selecionados. Pior, nem perto disso chegou. Como muito bem observou o Xico Sá na sua coluna semanal, se o futebol fosse comparado à literatura, até meados de 70, o futebol arte da seleção conferia um “quê” de poesia, ao passo que nosso estilo atual não passa de uma sofrível auto-ajuda. “Futebol moderno”, dizem alguns.
A seleção brasileira hoje não possui nenhum Romário de 1994 ou Rivaldo e Ronaldo de 2002. Definitivamente o time não empolga. Como vibraremos quando estivermos perdendo, ou o Kaká se machucar e do banco surgir Júlio Batista? Ou Josué?! Ademais, se a nação do futebol, detentora de maior número de títulos mundiais, e que é a maior exportadora de talentos para o mundo, tem entre seus titulares o Elano, devo rever de forma urgente meus conceitos futebolísticos.
Criticas à parte, inevitáveis nessa altura do campeonato, sabemos que quando chegar a hora, independente de quem estiver lá com a bola nos pés, nos reuniremos na casa de quem tiver a maior televisão da turma, com a picanha no fogo, cervejinha no freezer e o coração na mão, torceremos apaixonadamente pela seleção, ouvindo o Galvão e seu “aguenta coração”, (porque a gente critica o sujeito a vida toda, mas é incapaz de assistir jogos do Brasil em outro canal) e no íntimo ainda pedindo para que o time adversário faça um golzinho, pois assim acertaremos o resultado do bolão.
Em uma semana entraremos num estado hipnótico que durará quase um mês, mas que vale a pena, é só de quatro em quatro anos. Não é a toa que, quando vemos alguma comemoração exagerada, logo associamos “parecia até a copa!”. A Espanha é a favorita, a Holanda e a Argentina estão muito bem. Será que vai dar? O coração começa a acelerar, falta pouco, já sou capaz de ouvir: “Bem amigos da Rede Globo, voltamos em definitivo...”

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Preguicite aguda

Tenho alguns amigos que me julgam ser a pessoa mais preguiçosa que eles conhecem. Discordo totalmente. Ou quase. É que depende muito da coisa. Devo confessar que talvez a preguiça seja a coisa que mais atrapalha a minha vida, mas tenho sorte de morar com pessoas um pouco menos preguiçosas, senão eu estaria perdido.
Não sei cozinhar, óbvio. Preguiçoso que é preguiçoso, nunca vai se dispor a aprender essa arte, nem em casos de extrema necessidade. Para isso existem os miojos e os congelados, além das padarias de esquina. Mas como sempre há dias atípicos, quando retornei de São Paulo para Florianópolis da última vez, os caras aqui de casa estavam num período do internato médico em que mal tinham tempo para almoçar, que dirá cozinhá-lo. Como eu ainda estava de férias, achei que não custava tentar fazer alguma coisa para eles comerem; eu sabia que o que sempre me impediu de cozinhar foi a preguiça, e não podia ser nada muito complexo. E assim, aprendi a fazer arroz, ovo frito e ferver salsicha (além de lavar e temperar uma boa salada de alface com tomate).
E ficou nisso mesmo. De lá pra cá, preparei mais duas refeições (e lá se foram mais de dois meses), sendo a última, ontem. Juro que até pensei em preparar algo diferente, procurei no Google por “receitas fáceis”, que não me pareceram tão fáceis assim, depois por “receitas rápidas e muito fáceis”, cuja complexidade em muito me surpreendeu, e acabei desistindo quando me passou pela cabeça procurar por “receitas ridiculamente fáceis” ou “receitas culinárias para deficientes físicos”. Resultado: Arroz, ovo, salsicha e salada de alface com tomate (e cebola, desta vez!)

No fundo minha preguiça não foge do trivial, tenho preguiças como as de todo mundo. Como preguiça de arrumar as roupas no armário depois de chegar de viagem, de lavar a louça, preguiça de trocar o canal da televisão se o controle não está por perto, de cortar as unhas do pé (mas eu corto, e regularmente; bom mesmo era o tempo em que minha mãe cortava), entre outras preguiças comuns.
Duas coisas que estão intimamente atreladas são a preguiça e o sono. Claro, quando a pessoa está com sono, tem preguiça de realizar qualquer que seja a atividade. Acontece que ando desenvolvendo uma mania peculiar. Assim como muitas pessoas, durmo assistindo a nove entre dez filmes que alugo. Sempre fico naquela briga para manter os olhos abertos, e quando percebo, já estou abrindo-os novamente. Entretanto de uns tempos pra cá a coisa chegou a tal ponto, que certa vez, quando o sono começou a se avizinhar, consegui me convencer de que o filme ao qual eu estava assistindo não era lá daqueles em que as imagens importavam tanto, eu deveria me ater mesmo aos diálogos, e para isso, os olhos fechados até ajudariam.
Agora, nada ganha de uma prova na segunda-feira. Se existisse alguma espécie de preguiçômetro, eu seria capaz de apostar altas quantias que os maiores graus seriam detectados nas pessoas que têm de estudar no domingo.
Você acorda cedo, bota o despertador para tocar as oito horas, e até levanta disposto, mas ao passar pela sala rumo à cozinha, seduzido pelo cheiro de café e do pão fresquinho que a mãe acabou de trazer da padaria, vê a televisão e se lembra que vai passar a Fórmula 1. Pronto. Pode o Rubinho estar largando dos boxes que você se convence que não pode deixar de assistir a corrida. Antes da metade o carro do Rubinho quebra, mas a luta pelas primeiras posições é tão boa que você fica até ver o pódio. Acabada a corrida, dá uma espiada na cozinha, vê a mãe preparando aquela tradicional macarronada e reflete que não compensa começar a estudar agora, se daqui a pouco o almoço será servido.
Findada a refeição, que você comeu feito um boi, se convence facilmente de que não faz o menor sentido estudar de barriga cheia, não vai dar pra se concentrar, e aproveita para tirar aquela soneca pós-prandial sem remorso algum, no sofá mesmo. E quando percebe, está sendo acordado pelo pai, que liga a tevê para assistir o campeonato de futebol. Assistir futebol nas tardes de domingo pode ser considerado pelo brasileiro algo quase religioso, portanto aquele Ferroviária x XV de Jaú se torna questão de honra, vão te olhar feio se sair da sala com um livro na mão.
O Sol começa a se pôr e agora (só agora) você começa a sentir um leve desespero. Deixou para estudar no último dia e a preguiça o levou ao extremo de começar só de noite. Você então vai para o quarto, se concentra, começa a ler o livro, a coisa flui bem nas dez primeiras páginas. Mas aí você inevitavelmente terá sede ou vontade de ir ao banheiro e, com o livro na mão, passa novamente pela sala, vê que no Fantástico está passando uma reportagem interessantíssima e não resiste. Quando menos espera, está segurando de um lado o livro e do outro o controle remoto, zapeando os canais, até a hora em que começa aqueles filmes de fim de noite dominical, geralmente com o Steven Seagal ou o Charles Bronson, que conseguem fazer com que a matéria que você deixou de estudar o dia todo pareça legal.
Mesmo assim você não consegue, e agora é tarde demais. Chega a conclusão de que é melhor, mesmo não tendo estudado nada, dormir de uma vez e chegar inteiro amanhã para a prova, pois com a mente descansada você conseguirá lembrar melhor do conteúdo das aulas, que você, com alguma sorte, não matou. Por preguiça, claro.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Quando ninguém ri da piada

Há poucos dias estava na fila do restaurante universitário (o RU) com alguns amigos, quando resolvi contar uma história.
Quem me conhece sabe que sou dado a contar histórias, em sua maioria, grandes abobrinhas, vivenciadas ou não por mim, mas que na maior parte da vezes rendem algumas risadas. Desta vez, em particular, não, muito pelo contrário. Foi ridículo, totalmente constrangedor.
Acontece que ando lendo um livro de crônicas do Mario Prata, consequentemente, quando gosto dos textos, acabo repassando as narrativas para o pessoal. E era isso que eu ia fazer.
Estávamos lá, esperando o RU abrir, o Marcão, o Ronaldo, o Japa, o March, o Paraguaio, a Vanessa e eu, quando solto: “Nossa, li uma crônica ontem muito boa, deixa eu contar”. Nisso o March perguntou: “Não é a do Tumitinha de novo, né Pedrão?”, não, não era.
Não me lembro muito bem porquê, mas demorei uns cinco minutos para iniciar o relato, dizendo que a Vanessa não podia ouvir, e depois fazendo alguns outros comentários sobre o povo que passava na fila, o que aumentou consideravelmente a expectativa em cima da coisa.
A história, que eu definitivamente não me atrevo a contar novamente, envolvia o Mario Prata e um primo dele, que hoje é reitor da universidade onde estudo. Eu, sinceramente, tinha achado a situação cômica, tanto que decidi contar, mas a repercussão não foi bem a que eu esperava.
Todos atentos olhando para mim, começo a narração. A gente sempre imagina os momentos em que as pessoas começarão a rir; eu, por acaso, calculei mal. No primeiro momento supostamente engraçadíssimo, ninguém abriu sequer um sorriso, mas não me deixei abalar. Prossegui, e no segundo momento totalmente hilário (julgava eu), os rostos não só não mudaram de feição, como meus ouvintes começaram a se entreolhar. Naquele instante, percebi que a coisa não ia acabar bem, mas não tinha como voltar atrás.
Lembrando da situação, me sinto mal até agora, óbvio que eu já contei histórias sem graça, mas essa foi de matar, desastrosa. Aquele clima de expectativa foi sendo substituído por uma angústia crescente, todo mundo percebendo o desconforto que se apossou sobre mim, contando uma história sem graça, que não evoluía, não acrescentava nada a ninguém e que os deixava com um vergonha alheia, assistindo minha sofrível performance.
Em dado momento, na tentativa de mudar os contornos da narrativa, resolvi apelar para um “mas vocês não acham interessante...”. Quando um negócio que era pra ser engraçado, (e isso tinha ficado claro antes de começar a narração) vira “interessante”, significa que você precisa urgentemente rever seu conceito de humor. Há vezes em que você conta uma piada, e de tão sem graça o pessoal acaba rindo (geralmente isso acontece em churrascos, quando a carne acabou e a cerveja está preste a), mas nem nisso essa minha história deu. Quando eu acabei, tava um clima pesado, ninguém ali sabia lidar direito com a situação. Fui eu quem tive que dizer “Mas a do Tumitinha era legal, não era?”.

- Ah! A do Tumitinha era muito boa!
- Nossa, era legal mesmo! Pô, Tumitinha...hahaha!!
- Como que pode?! Tumitinha não dá!

A fila do RU começou a andar. Entramos, pegamos as bandejas, nos servimos, almoçamos conversando sobre assuntos aleatórios, mas antes de irmos embora, ainda comentei: “Fazia tempo que eu não ficava tão sem graça como agora, contando aquela história”. Todo mundo se convalesceu, eles também ficaram muito sem graça, sofreram durante aqueles minutos que a fila não andava. Mas alguém, não me lembro quem, sugeriu: “ah, pelo menos você vai ter sobre o que escrever”.
Aí está. Tenho de admitir que era pra ser um texto cômico. Pelo menos um pouquinho. Se não foi, sugiro que vá ler a crônica do Mario Prata, sobre o Tumitinha. É diversão garantida.

sexta-feira, 26 de março de 2010

A primeira sutura a gente nunca esquece

Domingo passado fiz meu primeiro plantão em clínica cirúrgica no Hospital Florianópolis. Desde que resolvi que seria médico, nunca me imaginei como cirurgião e, sinceramente, pensava em não fazer nenhum estágio relacionado à cirurgia até passar pelo internato, quando obrigatoriamente o fazemos.
Objetivando não chegar no internato tendo de assumir que só fiz sutura em ratos e almofadas, e um pouco por curiosidade e pressão externa, resolvi me matricular na matéria optativa “Plantões em clínica cirúrgica no HF”, ou algo assim.
Pois bem, numa ensolarada manhã de domingo, sem nuvens ou vento, perfeita para ir à praia, acordei com uma margem de horário que julgava ser suficiente para me arrumar, pegar dois ônibus e chegar no hospital. Esquecendo-me que se tratava de um domingo, e portanto haveriam no máximo metade dos ônibus circulando pela cidade, cheguei, com o perdão da palavra, com o cú na mão, quase meia hora atrasado ao meu primeiro plantão.
Por uma sorte absurda, eu e minha dupla (fazemos os plantões sempre em duplas de acadêmicos, que acompanham um cirurgião) acompanharíamos o Dr. Edson, um sujeito que se mostraria muito gente boa, e que não reclamou do atraso.
Não havia passado cinco minutos desde a minha chegada, quando apareceu um rapaz com um dos dedos da mão envolto num monte de papel. E lá fomos nós, eu e o Danilo Gebrin, minha dupla, cuidar do caso.

Eu nunca havia feito procedimento algum, mas percebendo que o Danilo era bem sossegado, e tendo a permissão do Dr. Edson para resolver o problema, tomei a frente da situação: “Me diz ai cara, o que foi que você fez? “ Descobri então que ele havia cortado o dedo indicador da mão esquerda em vez da mandioca que estava em sua posse. Coloquei as luvas e fui verificar o ferimento. Não era muito grande, disse ao Danilo “uns 3 pontos aqui são o suficiente, não?” E o Danilo concordou. “Pode deixar comigo” disse eu, e comecei a proceder, tal como havia aprendido na teoria.
Limpa o ferimento, põe o campo, aplica a anestesia, sutura, tira o campo, limpa novamente, faz o curativo...pronto, está feito o serviço. Tranquilo. Não para a primeira vez.
Até pôr o campo foi uma beleza, sem grandes dificuldades, mas então chegou a hora da anestesia. Eu nunca havia anestesiado ninguém, não deveria ser difícil, mas sabe como é. É uma pessoa que tá na sua frente, que tá com medo porque sabe que a coisa vai doer, e nem desconfia que você nunca fez aqui antes. Procurei demonstrar a maior frieza possível, e acho que na voz até consegui enganar.
Me contive em informar ao rapaz, como fez o Thiagão, da minha sala, que aquela seria a minha primeira sutura, mas antes de continuar, procurei alerta-lo: “Tente não ficar olhando, vai ser melhor pra você”. Mal sabia ele que a sugestão não era para que ele não se impressionasse com o procedimento, com todo o sangue que iria escorrer, ou com a pele dele sendo puxada pra lá e pra cá, e sim porque minhas mãos começaram a tremer mais do que as de alguém com mal de Parkinson e eu por alguns instantes não conseguia nem acertar a agulha na ferida do rapaz.
Depois da anestesia, achei que minhas mãos resolveriam obedecer melhor aos meus comandos, o que se mostrou rapidamente ser uma ilusão. Ao pegar a pinça, o fio e o porta-agulha para iniciar a sutura, eu continuava tremendo feito vara verde. “Não olha!” dizia eu, ao menor sinal de movimento da cabeça que o moço fazia.
Santa anestesia! Fico imaginando se o cara tivesse que sentir todas as vezes que eu passava a agulha por sua pele. Errei tantas vezes, por afobação, que se o corte fosse no rosto eu certamente seria processado por aquela sutura. Dei os três pontos que planejava e percebi que ficaram muito próximos. Ficaram bons, porém próximos. Resolvi então dar um quarto. E, acreditem, esse ficou feio. Catastrófico. Destruiu toda a sofrível simetria que eu havia conseguido até então e ficou do lado oposto da ferida do que tinha ficado os demais pontos.
Limpei o local, fiz rapidamente o curativo, e declarei “Rapaz, ficou uma obra de arte” (pensando internamente “só se for arte moderna”) e mandei-o pegar as receitas com o Dr. Edson.
Ele ficou bastante agradecido, e eu, por minha vez, também tive muita vontade de agradece-lo por ser a primeira pessoa na qual pude praticar uma sutura. Fiquei alguns instantes pensando se ele iria ficar me xingando ou voltar ao hospital me procurando quando abrisse o curativo e visse aquela bizarrice sem precedentes no seu dedo. Mas o tempo foi curto, pouco depois chegou uma senhorinha com as pernas queimadas pois deixou derrubar a bandeja quente com os salgadinhos da festa da neta, que seria dali a algumas horas.

Durante o dia chegaram algumas outras queimaduras, gente que pisou em prego, mordida de cachorro, acidente de moto, além de uma segunda sutura, que eu novamente pedi para fazer, afinal, precisava treinar.
“O que que o sr. fez aí na perna?” O homem estava todo ralado, mas com um corte na perna que precisava ser suturado. Respondeu que tinha subido no telhado para consertar sei lá o que, se desequilibrou e caiu. Limpa, põe campo, anestesia...
“Espera dr., se a gente bebeu um pouquinho, a anestesia pega?”
E assim, tremendo consideravelmente menos, fiz minha segunda sutura, num senhor que depois de ter tomado umas caipirinhas no almoço dominical com a família, achou que era um bom negócio subir no telhado para resolver o problema de goteiras. Foram quatro pontos. Ficaram bons, fui até elogiado pelo Dr. Edson.
Devo confessar que esse tipo trabalho é bem gratificante. O resultado é imediato, você vê ali, na hora, que pôde efetivamente ajudar alguém, e essa pessoa, por sua vez, reconhece seu trabalho, e sai dali geralmente muito agradecida. Não posso dizer que passei a cogitar ser um cirurgião, fiz apenas pequenos procedimentos, e este foi apenas meu primeiro plantão. Mas posso dizer que já vejo a coisa toda com outros olhos.

Mesmo assim, ainda concordo com outro amigo meu, que me contou que recentemente estava conversando com outros amigos que fazem medicina, todos eles decididamente futuros cirurgiões, que discutiam entre si mais ou menos desta forma:

-“Acho muito massa a cirurgia plástica, os pontos que eles dão e tal...”
-“Não cara, massa mesmo é a ortopedia, aquela pedreirice, força bruta, furadeira, parafuso...”
-“Gosto mais da neurocirurgia, operar com o paciente acordado é animal...”

E meu amigo, ainda que timidamente, foi quem concluiu a conversa:

-"Olha, sinceramente, massa mesmo é o ambulatório. Chegar e dizer: “Tudo bem, Dona Maria? como é que vai a pressão...”

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Mudança de assunto

Resolvi deixar minhas percepções cotidianas um pouco de lado e escrever sobre outro tema que me interessa bastante: cinema.
Antes que qualquer pessoa razoavelmente entendida do assunto perca seu tempo, já deixo aqui algumas informações sobre minha relação com a sétima arte, a fim de esclarecer que o negócio é levar um papo descontraído sem muitas reflexões profundas. Por ora, não discorrerei sobre nada em específico, apenas alguns tópicos breves para que se sintam familiarizados com quem vos falará daqui por diante.

-Não sei se o fato de eu ter assistido Avatar em versão dublada e ser esta minha primeira experiência em 3D, de modo que eu não consiga ver a revolução em relação aos antecessores, colaboraram para minha má impressão do filme. Mas minha opinião (traduzida ao pé da letra por um comentário que vi num certo blog) é de que se trata de uma mistura de Pocahontas com O último Samurai, ambientada em outro planeta. (Mas o 3D é bacana)

-Gosto bastante de Hitchcock e Woody Allen. Do primeiro, assisti uns dez e gosto de quase tudo o que vi, agora me vem a cabeça particularmente “Disque M para matar” e “Um corpo que cai”. Mas no geral, todos que assisti são bons.

-Do segundo, já estou chegando à segunda dezena. “Annie Hall”, “Manhattan” e “Crimes e Pecados” são meus favoritos. “Vicky Cristina Barcelona” não fica para trás. Confesso que acho alguns bem mais ou menos, e “Sonho de Cassandra” é quase uma catástrofe.

-Apesar de ser quase senso comum, não consigo ver Marlon Brando como o melhor ator de todos os tempos. Depois de ter levado aquela índia para receber o Oscar por “O Poderoso Chefão”, acabou de perder toda a credibilidade. Jack Nicholson e Sean Penn, a meu ver, estão a léguas de distância desse camarada.

-Fellini ainda me soa inalcançável. “Oito e meio” e a “Doce Vida” me passaram em branco. Acho que ainda tenho chão pra saber gostar deles. Mas tenho consciência que a culpa é minha. Por outro lado, gosto muito de Truffaut e seus Incompreendidos.

-Quando acabei de ver “A Lista de Schindler” pela primeira vez, pensei instantaneamente “esse é o melhor filme que já vi”. Isso jamais me ocorreu antes ou depois com qualquer outra película, mas preciso repensar sobre o assunto.

-Quando penso na melhor cena de inicio de filme, me vem o desembarque em “O resgate do Soldado Ryan”, a melhor cena final (não riam) é o velho, supostamente morto desde o inicio, levantando, fechando o grande portão e dizendo “game over” no primeiro e único filme que presta da sequência “Jogos Mortais”.

-Dois filmes que assisti no cinema e não queria que acabasse nunca são: “Gladiador” e “Os Infiltrados”. Dois filmes que assisti em casa e não consegui passar da segunda cena são “Serpentes a Bordo”, com Samuel L. Jackson e “Zohan”, com Adam Sandler. Há vários outros que eu não passo porque durmo, mas é que esses eu achei ruins mesmo.

-O único filme que assisti 3 vezes no cinema foi “Batman – O cavaleiro das trevas”. Vários outros assisti 2 vezes. E nunca sai antes de uma sessão acabar. A única vez que dormi (no cinema) foi em “P.S. Eu te amo”.

-Almodovar é um afetado, Tarantino também, mas de um jeito muito distinto e melhor. Lars Von Trier é indiscutivelmente perturbado, e apesar do bom “Dogville”, estragou o que poderia ser o excelente “Dançando no Escuro” e fez o pior filme que já vi até o fim (ao lado de “Quero ser John Malkovich”) “O Anticristo”.

-Stanley Kubrick é hors concours nessa lista de perturbação, mas emplacou dois dos maiores vilões da história do cinema: Nicholson em “O iluminado” e o HAL 9000 em “2001” (apesar do filme se tornar progressivamente impossível de se entender), ao lado de Hannibal Lecter em “O silêncio dos Inocentes”.

-Com exceção de “Old Boy” e a “Viagem de Chihiro”, não me recordo de ter conseguido terminar de assistir qualquer outro filme oriental. Confesso que ainda não tentei nada do Kurosawa.

-Por fim, também gosto de comédias, comédias românticas e animações, destas últimas, ainda prefiro aquelas na linha de “A fuga das Galinhas”, mas também curto os da Disney/Pixar. Das comédias românticas, “Simplesmente Amor” é imbatível e nas comédias, Jack Black e Will Farrel à parte (apesar de andarem fazendo muitas porcarias recentemente), não me lembro de nada tão bom como “Se beber, não case”, nos últimos tempos.

Daqui pra frente, se eu me animar a continuar escrevendo, os assuntos serão mais pontuais. Espero que tenham se identificado com uma ou outra coisa que escrevi, pois, se este não for o caso, não os vejo por aqui tão cedo. Pelo menos não até eu voltar a escrever sobre velhinhos corajosos e festas de natal.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Na fila do banco

Há lugares que possuem um grande potencial para gerar confusões. Ressalto as filas de banco em dia de pagamento, ônibus lotado em dia de chuva e saídas de estádio quando o time local perde. Todas elas provocam um grau crescente de irritabilidade nas pessoas que qualquer espirro vira motivo de confrontos fatais. Hoje não fui a jogo, não peguei ônibus e, embora não seja dia de pagamento, provoquei uma importante confusão numa fila de banco.
Antes de narrar o acontecimento, gostaria de tecer alguns breves comentários sobre duas invenções relativamente recentes que vieram para acabar com a paciência dos cidadãos de bem:
Celulares que funcionam como radinhos de pilha e dispensam os fones de ouvido, dando a oportunidade do dono do aparelho de compartilhar seu gosto musical com todos aqueles que estejam há um raio de cem metros de distância.
Igrejas evangélicas de fundo de garagem, fabricantes de fanáticos religiosos que não conseguem finalizar uma frase sequer sem um “glória a Deus” e te chamam de irmão sem nunca ter te visto antes.
Juntem esses dois itens e comecem a calcular a dimensão do meu problema.
Acontece que estava eu numa fila da Caixa Econômica Federal para fazer um simples depósito na conta de um amigo, numa tarde exemplar, na qual o sistema de depósito por envelopes não estava funcionando e havia apenas dois caixas para atender a uma fila de mais de trinta pessoas, sendo um deles caixa preferencial para idosos, gestantes e pessoas com deficiências, quando começo a ouvir um barulho chato vindo das proximidades.
A qualidade do som era terrível, mas me esforçando, consegui identificar uma canção gospel oriunda de um aparelho celular pendurado na cintura de um sujeito que acabara de entrar na fila. Não tinha como aquilo acabar bem. A fila foi avançando com velocidade desprezível, e o camarada continuava com o aparelho ligado. Eu estava conformado com toda aquela demora da fila, mas a entrada do sujeito mudou a conjuntura de maneira inaceitável.
Já perdi a conta de quantas vezes me arrependi por não ter reclamado de situações que me incomodavam. Seja por causa desses malditos celulares que o povo põe pra tocar em locais inapropriados (entenda-se inapropriado qualquer lugar que não seja a rua ou a própria casa), por ver jovens sentados nos coletivos e não cedendo seus lugares para os idosos; ver velhos tarados encochando mocinhas indefesas nesses mesmos coletivos abarrotados, entre tantos outros absurdos cotidianos. Tenho a certeza de que a maioria das pessoas acabam passando uma vontade tremenda de fazer alguma coisa a respeito, mas raramente o fazem. Acabam sendo permissivas e nada muda.
Devo admitir que não é fácil fazer uma intervenção dessas. Embora me sentisse como porta-voz da maioria das pessoas da fila, chegar do nada e mandar alguém desligar o aparelho celular exige um certo cuidado, tendo em vista que uma pessoa desse gabarito provavelmente não acataria a reclamação e sua investida poderia ser completamente em vão, além de provocar possíveis represálias. Nessas horas o tempo começa a passar mais ligeiro, e enquanto eu pensava na melhor abordagem, de repente me vi sendo o próximo a ir ao caixa. Foi quando forcei um olhar sério, encarei o sujeito e disse:

-O senhor tem fone?
-Como?
-O senhor tem fone de ouvido?
-Fone de ouvido? Tenho, mas tá em casa.
-Então faça o favor de desligar o celular, ninguém aqui é obrigado a ouvir as músicas que o senhor quer.
-Você quer que eu faça o quê?
-Que desligue o aparelho (querendo dizer “essa merda”), é proibido fazer isso. Aqui não é a rua, não é lugar público.
-Tá te incomodando?
-Tá! Imagina se todo mundo aqui trouxesse o celular e ficasse ouvindo sua música como o senhor tá fazendo.
-Posso ficar com ele aqui grudado do ouvido?
(A resposta que eu queria dar nessa hora era: “Enfia isso no *** e vê se o som chega no ouvido”)
-Não! E se não desligar logo, quando sair da fila chamo o segurança. Além de proibido é questão de bom senso, educação.
-Que educação o quê! Ô meu filho, que é isso, Deus também te ama.

Nesse momento eu desisti. Como é que você vai debater com uma pessoa dessas? Lá na “Igreja Quadrangular dos Apóstolos que se sentaram a direita de Jesus na Última Ceia”, devem ter dito que é bonito louvar a Deus sobre todas as coisas, mas não explicaram que ouvir cânticos de louvor numa fila de banco não vai angariar novos fiéis, muito pelo contrário.
Fiz calmamente o depósito (mentira, minhas mãos estavam tremendo de nervoso) e antes de sair do banco, como prometido, fui ao segurança pedir que repreendesse “o cara que estava ouvindo, descabidamente, música em alto volume na fila do caixa”. Em meio a minha denúncia, percebi o sujeito do celular espreitando, certificando-se se da seriedade da minha promessa.
Sai do banco com a sensação de dever cumprido. Desejei que o ato servisse de motivação, para que as pessoas que estivessem ali fizessem igual quando se vissem frente a outras situações semelhantes. Pra dizer a verdade imaginei uma saída triunfal, com o pessoal da fila me aplaudindo, ou coisa que o valha. Fiquei até com certa dúvida se não exagerei no gesto. Também não fiquei pra ver se o guardinha foi repreender o moço. Mas tenho certeza que ele pensará duas vezes antes de ouvir música pelo celular numa fila de banco.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

À parte o natal

À parte o natal, toda sua simbologia, rituais e tradições sobre as quais certa vez discorri, ficam os pluritemas elementares a qualquer reunião casual entre familiares. Desta vez o natal foi comemorado aqui em casa, numa noite onde houve ausências sentidas, mas também presenças indispensáveis, que protagonizaram situações dignas de nota.

Após a missa, enquanto minha mãe terminava os preparativos para receber os convidados, meu pai e eu fomos de carro buscar uma tia que mora aqui no bairro. A tia Dirce é divertidíssima, sempre falante, narra histórias longas com uma riqueza de detalhes surpreendente, e durante o pequeno trecho da casa dela até a minha, foi nos contanto da nova casa que meu primo (filho dela) havia comprado numa cidade do interior mato-grossense, pormenorizando cômodo por cômodo, numa sequência de relatos que iniciou com “O Marquinho vai ligar pra vocês contando uma surpresa: Ele comprou uma casa!” E assim já nos criando a responsabilidade de forjar uma reação de incredulidade caso esse telefonema viesse a se concretizar.
Na pequena pausa que ela fez, enquanto nos falava sobre algo que ficava entre a porta da cozinha e um determinado corredor, percebeu que o rádio estava ligado (“Uma noite e meia” era a música do momento) e perguntou-nos quem estava cantando. “É a Marina, tia” respondi, no que ela de pronto rebateu “Ah! Marina Monte!! Adoro!”. E continuou estragando a surpresa.
Chegamos em casa e aos poucos os demais convidados também. O tio Dorival antes mesmo de me cumprimentar, indagou pelo violão: “Tá com ele aí? Já, já você pega que se a gente não fizer barulho a turma dorme”. O violão só foi ouvido bem no final da noite, afinal de contas, todos tinham muito o que papear.

Nisso chegaram ainda os últimos convidados, a Tia Mirtes e o Tio Roberto, um tio meu fanático por futebol, que não aparecia por aqui havia anos. Palmeirense roxo, devido ao fiasco do time no campeonato brasileiro, ao adentrar na sala, já avisou: “Sem falar de futebol hoje hein”. No que a tia Mirtes retrucou, dizendo que era impossível ficar ao lado do tio Beto por mais de dez minutos sem falar sobre futebol.
Formaram-se pequenos grupinhos em diferentes cômodos da casa, entre os quais, como bom anfitrião transitei, e pude participar um pouco de cada conversa. No corredor externo estavam o tio Dorival e o Tio Moacir comentando sobre confusões em hospitais. Que o sistema é todo errado e isso gera verdadeiros reboliços nas instituições, citavam ocasiões em que presenciaram confrontos corpo a corpo envolvendo parentes de doentes e funcionários, em meio a argumentos políticos para mudar os rumos da saúde no país. Fiquei pouco por ali; apesar de ter estudado toda a estruturação e lógica do SUS, trocar informações com esses dois visionários dispenderia um tempo precioso, no qual muita outras conversas interessantíssimas deviam estar ocorrendo em outras partes da casa, das quais eu não podia deixar de participar.
Na cozinha, pela qual tive uma pequena passagem, uma das tias estava contando o caso do cachorro do inquilino da casa de trás, que tinha morrido enforcado pela coleira quando tentara pular pela janela. O papo degringolou para uma análise sobre criar ou não criar cães em apartamentos, no meio do qual, quando já estava de saída, ouvi meu pai comentar: “Higienópolis é o bairro de São Paulo com a maior população canina”. Juro que não duvido do teor da informação, mas a cada dia fico mais impressionado com a capacidade que meu pai tem de saber esses tipos de coisa.
Na sala da TV estava a Vó Teresa, em sua cadeira cativa em frente à televisão, que transmitia um documentário sobre a vida marinha, denunciando a um primo meu sua desconfiança de que as blusas que ela ganhara não sei de quem eram de brechó. Fiquei por ali um pouco, me divertindo com o relato das peripécias e tramóias de minha avó com suas amigas da casa de repouso, mas não pude deixar de ouvir quando alguém na outra sala disse “Claro que eu estava lá no estádio!”.

A tia Mirtes realmente tinha razão. Chegando na sala vejo que o tio Beto conseguiu mobilizar boa parte dos parentes num papo futebolístico. Fazia um paralelo entre o fracasso palmeirense deste ano com o campeonato paulista de 1984, quando o time só precisava empatar o último jogo contra a Inter de Limeira no Morumbi e levantaria a taça, mas acabou perdendo. “E o time era tão bom!” se lamentava ele, e prosseguiu com a escalação do elenco todo, incluindo os suplentes.
Claro que não faltaram as conversas triviais sobre o trabalho, a família e as novas doenças que surgem com a idade, os balanços de final de ano, e os planos para o seguinte, conversas que sempre se estendem ou se repetem na semana seguinte, na festa do Reveillon.
Por conta de umas questões paralelas, Tia Nena e seus famosos presentes não compareceram, de modo que a meia-noite não teve lá sua cara de sempre. Brindamos o nascimento do menino Jesus, e em pouco tempo, já que todos estavam devidamente alimentados, começaram a despedir-se.
Alguém tem de tomar a iniciativa, e a saída triunfal da Tia Dirce entrará para os anais de nossas festividades. Estávamos Tia Mirtes, meu pai e eu conversando na sala da frente, quando Tia Dirce surge se despedindo às pressas, dizendo-se vitimada por um repentino desarranjo intestinal e, argumentando só utilizar o banheiro da própria casa para estes fins, colocou definitivamente os banheiros da minha casa no mesmo patamar dos de rodoviária e postos de gasolina.

À parte o natal, no fundo não sobraria quase nada. Até porque na virada do ano muita gente viaja, e a reunião da família perde todo esse potencial de proporcionar situações diversas, por vezes cômicas, por vezes trágicas, ora desagradáveis, ora reconfortantes, e que nos dá uma sensação gostosa quando nela pensamos, não nos deixando faltar a nenhuma edição.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

COBREM 2010

Voltei ontem da calorosa Natal, onde participei do COBREM (congresso brasileiro de estudantes de medicina). Em meio a discursos inflamados com propostas de mudanças na saúde, educação médica e formação política dos estudantes de medicina, tive tempo ainda de fazer algum turismo e conhecer pessoas muito interessantes.
Na ida, durante a peregrinação aeroportuária tive de engolir a bacaníssima novidade das companhias aéreas: agora você não passa mais fome com a barrinha de cereais ou o pacotinho ultra-econômico de amendoins que eles te dão, seja a duração da viagem de uma ou de cinco horas. Hoje, eles oferecem deliciosos sanduíches a preços competitivos! Preços competitivos? Além de pagar pela passagem, agora ainda tenho de pagar pelo que consumo dentro do avião? É obvio que eu não comi nada, e não me surpreenderia se eles ainda cobrassem dez porcento pelo serviço. Fico me perguntando sobre o que eles quiseram dizer com “preços competitivos” (não havia nenhum lanche por menos de dez reais).
Natal possui uma população muito receptiva. Fui a uma casa de Forró (Rastapé), cuja faixa etária variava dos zero aos noventa e nove anos. As pessoas eram invariavelmente animadas, e não tinha como ser diferente. Eu e meu “dois pra lá e dois pra cá” passamos vergonha naquele meio, apesar disso ninguém me rejeitou durante minhas corajosas investidas, as moças até se propunham a me ensinar novos passos.
Visitei “o maior ser vivo do planeta” (há controvérsias): o maior cajueiro do mundo, que ocupa um quarteirão inteiro. Para quem nunca viu, ele não é grande em altura, mas sim em comprimento. Realmente impressionante, apesar de seus escassos cajus. Conheci ainda a famosa praia de Pipa, considerada a terceira mais bela do país, onde tive a oportunidade de nadar junto aos golfinhos. Não pensem que qualquer um deles encostou em mim pedindo afago, ou ficaram fazendo coreografias, mas chegaram bem próximos, há menos de cinco metros, o que na verdade chegou a amedrontar. Uma coisa é vê-los em segurança, do barco, outra é estar indefeso em meio a criaturas marinhas que por mais que pareçam sempre amigáveis nos filmes, tem quase o seu tamanho, são mais ágeis que você, e estão em bando. Parecia, no entanto, que eles não estavam afim de confusão, melhor para os dois lados.
Claro que não só de forró e turismo foi feita minha viagem, muito pelo contrário. Como disse antes, fui lá devido ao COBREM. Antes de iniciar esta crônica eu pretendia escrever um relatório sobre os debates e discussões que por lá aconteceram, mas definitivamente isso não faz o meu gênero. Prefiro por aqui, confessar que quase fui apedrejado pelos esquerdistas do movimento estudantil, que tiveram de me ouvir sustentando a ideia de que se eles não tornarem seus debates menos tendenciosos e doutrinários, o movimento nunca será fortalecido de maneira relevante.
Se não houve apedrejamento, por pouco também não se viram chineladas. Acontece que um amigo meu de delegação, enfurecido pela desorganização na ordem de assinar uma determinada ata, resolveu dar fim à aleatoriedade do caminho por qual passava o caderno e aos gritos de “não sabem nem organizar uma fila e querem organizar o movimento estudantil” tomou seu chinelo nas mãos passou a ameaçar qualquer um que se sujeitasse a desrespeitar a ordem correta da fila.
Devo dizer que, independentemente das inclinações políticas de cada um, todos ali eram muito bem intencionados. Todos lutando por objetivos comuns, de melhorar a saúde, a educação médica, e a formação política dos estudantes de medicina. Mas isso tudo até as 2h da madrugada, depois disso, mais do que merecidas, havia festinhas no alojamento, regadas a cervejinha e, na maioria das vezes, um bom samba.
Houve dias em que tocou funk, com a presença ilustre do Bonde das Bandidas, da UERJ, ou um pagodinho contratado pelo pessoal da organização. Talvez essas duas tenham sido as atrações de maior sucesso, mas devo dizer que não consegui me afastar um minuto sequer do samba. Tanto que no último dia, quando a banda Um a Menos (ainda preciso perguntar-lhes a origem do nome), do pessoal da UFPR foi fazer um show, acabaram me convidando pra dar uma canja. Foi sem dúvida uma grande honra.
Como escrevi anteriormente, conheci muita gente bacana, e presenciei vários momentos ora tocantes, ora engraçados (teve até gente sendo escoltada de volta para o alojamento pela polícia, além de uma outra determinada situação que gerou a desde já eternizada frase “tá dando a desgraça”) mas isso também daria outro texto gigantesco. Penso, por fim, que foi uma semana muito enriquecedora. Sinto-me privilegiado por ter este tipo de oportunidade.
Quero portanto, mandar um grande abraço pra todo esse pessoal que conheci: A Evelin da Comunidade, e toda a delegação gaúcha. Pra galera da banda Um a Menos: Lucas, Guarujá e André, e também seu “empresário” Igor. Para o Raphael de São Paulo, que era meu aliado nos debates e conseguiu aprovar diretrizes progressistas e fugir do apedrejamento. Para a Nicole e sua voz fabulosa, também para o Buginga (de “buginganga”, pelo que me disseram) do Maranhão e toda essa simpática delegação. Para o trio parceiro de Blumenau, ao qual já prometi que visitarei assim que puder, junto do qual ainda festarei muito. E por fim para a delegação da UFSC, que comigo festou, comigo debateu, e acima de tudo, tenho certeza, comigo muito aprendeu através desse povo todo com quem convivemos durante esses dias.

Para todos vocês, exceto os últimos, até qualquer hora, ou o próximo COBREM.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Casório moderno

Sábado passado foi celebrado o matrimônio de um primo meu. Casou-se aos 32 anos, o que não teria o menor cabimento há um século atrás. Naquela época, com essa soma de anos o cidadão já estava na meia idade, com a prole mais ou menos encaminhada e sua esposa já uma senhora distinta, de roupas com ares viuvescos, afinal de contas, com as condições de vida existentes, o sujeito que passasse dos 50 já estava no lucro.
Hoje, aos 32, das duas, uma: ou o indivíduo, aquele movido a paixões fulminantes, está no quarto casamento, com um saldo de pelo menos um filho por cada um deles, ou está oficializando a vida conjugal mais ou menos nesta época. São os tempos modernos, que trouxeram a expectativa de vida para cima dos 70 e a consciência de que dá tempo de fazer muita coisa, não precisa afobação.
Pois bem, de lá pra cá, não só o perfil do casal mudou, mas também todo o certame matrimonial. Há muito tempo não havia casamento na família. Eu devia ter uns 12 anos quando fui ao último, e as diferenças eram gritantes, imaginem se comparadas aos do início do século passado.
Casamentos de hora em hora, nos quais todo o garbo do atraso da noiva se perde em meio a multas dadas pelas igrejas por esse costume visto por elas como descabido. Meu pai ainda me contou que há padres, como o da paróquia aqui do nosso bairro que, se a cerimônia deveria começar as 20h e acabar as 20h40, e a noiva decidir tradicionalmente atrasar meia-horinha, fazem o casório em 10 minutos.
Fico pensando como é que acontece nessas ocasiões. Alguma parte da cerimonia o padre tem de pular. Nem que ele reze a missa tal qual um jogo de futebol transmitido pelo rádio, não conseguiria dar conta do recado. Mas que pelo menos haja bom senso.
Imagine o padre dando as instruções para os noivos e padrinhos: “Minha filha, você tem que percorrer esse corredor em meio minuto, não dá pra ficar posando pra foto. Padrinhos e madrinhas, no final da cerimônia, nada de congratulações exageradas. Vou pular aquela parte do prometo amar-te e respeitar-te até o fim dos nossos dias, essa coisa protocolar. Ah, e já fiquem com as alianças no bolso, não vai dar tempo de entrar a daminha de honra”.

Casamentos são bacanas. Reúnem pessoas que você só vê ali e nos funerais. Dia de ficar sabendo que a tia-avó do primo distante enviuvou, que o outro tio foi à bancarrota, perceber que aquela priminha encorpou e tá uma moçona, entre outras novidades pertinentes. Sento-me para aguardar o início do casório e noto que a igreja está relativamente vazia. Comento isso com meu pai e ele argumenta que é fim de ano, nas vésperas de natal, muita gente viajando, e além do mais, a festa já foi.
Como assim a festa já foi? “Pois é, um amigo do seu primo emprestou um salão de festas pra ele, só que final de semana retrasado, então ele preferiu economizar esse dinheiro e fez naquele dia mesmo”. E pra onde nós vamos depois daqui? “Pra uma churrascaria”.
Achei o fim da picada. Pô, há tradições e tradições. O padre querer fugir do protocolo é uma coisa, agora adiantar a festa para duas semanas antes do próprio casamento não dá! Parece justo que duas pessoas jovens, iniciando a vida de casados, tenham de juntar dinheiro para outras coisas, como montar a casa e tal. Mas até as mais pobres famílias fazem vaquinha caso haja necessidade, para que haja um festão. Segundo um amigo meu, na pequena cidade onde ele vive, a tradição é que a festa seja paga pelo pai da noiva. Alias quando ele contou essa história lá, o pessoal ficou alarmado. Chocado mesmo. Ou seja, em cada lugar um costume, mas NUNCA a festa antes! Apesar disso dizem que foi bem bacana, infelizmente não pude ir.
Um capítulo a parte é a escolha das canções que tocarão durante a cerimônia. Estão gradativamente substituindo as músicas eruditas por grandes sucessos da rádio, cinema ou telenovela. “Jesus, alegria dos homens” de Bach, deve ter sido tocada pela última vez no casamento dos meus pais. Sábado passado chegou a tocar até “Amigos para sempre”, que espero, não tenha nenhuma subjetividade particular ou conotações de ato-falho. Não me surpreenderei se daqui uns anos, algum casal moderninho resolver trocar a marcha Nupcial por “We are the champions”, ou coisa que o valha.
Outra coisa peculiar em meio a toda essa modernidade, mas essa todo mundo faz, e é de fato bastante pertinente, é a tal lista de presentes. O casal fecha uma lista com uma loja de artigos para casa e os convidados escolhem, dentre os utensílios, com qual presenteará os noivos. Pelo menos não se corre o risco de ganhar um barco de madeira de decoração, que possui dois metros e não caberá em canto algum, ou um lustre pavoroso, que deixará o casal constrangido quando a pessoa que deu visitar a moradia deles e perceber que ele não só não está pendurado no teto, como não está guardado em lugar nenhum. Apesar disso, soa-me estranho pensar que demos aos noivos um ralador de legumes.

Se a modernidade vem para ajudar, deveria criar um mecanismo diferente, ou até mesmo banir aquelas congratulações aos noivos depois do fim da cerimônia. Forma-se uma fila gigantesca, da qual sempre fazem parte vários furões, ou outros ainda mais espertos que dão a volta por trás e cutucam os noivos pelas costas para evitar toda a fila. E ela anda mais devagar do que fila de banco no dia do pagamento. Bom seria se ficasse um fiscal, ou até mesmo o padre, ao lado nos noivos cronometrando o tempo entre dizeres e abraços, o qual não deveria ultrapassar cinco ou dez segundos por pessoa.
Sábado passado pensei em abandonar a fila e ir bater papo com o Ricardo Prado, aquele grande nadador brasileiro dos início dos anos 80. Ele foi treinador do meu primo e estava lá para prestigiar o casamento. Vi-o na porta da igreja, iria apresentar-me como seu grande fã, dizer-lhe que também sou nadador e inventar algumas conquistas e outras lorotas, já que provavelmente nunca mais o veria. Cheguei a sair da fila, mas não mais o encontrei ali.
Depois fiquei sabendo que ele se enganou em relação ao horário e assistiu ao casamento errado. Deve ter passado a cerimonia inteira impressionado; como meu primo estava diferente, realmente um homem já! E no final, enquanto estávamos, a família toda, em meio a ultrapassagens um tanto quanto desnecessárias, rumando à churrascaria, num comboio que mais parecia aquele desenho “a corrida maluca”, ainda deve ter ficado horas numa outra fila interminável para cumprimentar as pessoas erradas.
À parte essas considerações, os casamentos continuam sendo fantásticos. Todos estes são detalhes, que mesmo somados têm importância diminuta no contexto geral. Independente do dia da festa, da escolha das músicas, da rapidez da cerimônia, enquanto ela estiver acontecendo, as pessoas se emocionarão, porque a noiva estará sempre absurdamente bonita, porque antigos e reprimidos amores agora se tornam impossíveis, porque os filhos estão partindo para uma nova vida, uma nova família, e porque todo o arranjo do acontecimento foi escolhido por seus protagonistas que, num dos dias mais importantes de suas vidas, transbordam uma felicidade comovente, que nos envolve e faz de tudo isso que por ora discorri, algo completamente irrelevante.

PS: Ando meio cansado desses meus finais nada renitentes. Por ora, me parecem inevitáveis.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

De passagem

Tarde dessas voltava para casa não me lembro de onde, quando, numa ruela bem próxima da minha casa ouvi o ronco furioso de um motor de carro, uns cinquenta metros atrás de mim. “Mais um querendo se aparecer.” pensei, afinal de contas, desde que mundo é mundo, ou desde que inventaram os automóveis e os recém graduados motoristas (ou até aspirantes a) são capazes de dar uma volta pelo bairro, sentem uma vontade irrefreável de fazer barulho com o Corsinha 1.0 que pegaram escondido do pai ou com o Opalão 77 emprestado do avô. Injusto, no entanto, seria excluir-me desta trupe, portanto não vejo razão para condená-los.
Acontece que eu era a única pessoa que passava por aquela rua na ocasião, contudo a barulheira não cessava. “Será que é alguém que eu conheço, e tá fazendo uma brincadeira?” . Mesmo assim não me virei para trás. Pouco a pouco o carro foi se aproximando, e quando passou por mim, não pude esconder a cara de espanto. Num desses carros família, tipo Palio Weekend, estava um casal de velhinhos, um vovô ao volante e sua senhorinha no banco do passageiro, olhando fixamente para frente e continuando a fazer um barulho danado.
Definitivamente eles não preenchiam o perfil de pessoas que saem por ai querendo impressionar quem quer que seja pisando no acelerador de um carro em ponto morto, mas se encaixavam perfeitamente naquele que agrupa os pilotos de primeira viagem. Seguiram até o final da rua, que faz uma curva e desemboca numa outra mais movimentada, cujo único sentido possível é uma subida. Ali, o carro morreu.
Por sorte não era a hora do rush. Passei por eles, atravessei a rua e fiquei alguns instantes assistindo. Várias e várias vezes a mesma sequência se repetiu: o velhinho dava a partida no carro, engatava a primeira marcha, pisava no acelerador, o carro não se movia e voltava a morrer. Nitidamente não conseguia sincronizar o movimento dos pedais, e a senhorinha, por sua vez, nada dizia, corroborando a suposição que eu tivera minutos antes, de que eles deveriam ser iniciantes.
Senti uma vontade grande de ajudá-los, passei breves instantes avaliando a situação e cheguei a decisão de que não deveria socorrê-los. Retomei o caminho de casa convicto de que tomara a decisão certa, mesmo sob o olhar reprovador de uma idosa mulher que por ali passava e deve ter confirmado sua opinião de que a juventude hoje em dia é pouco prestativa, mal-educada e inevitavelmente perdida.
Durante meu tempo de reflexão, imaginei algumas possibilidades para aquela cena atípica: Um homem de idade que sempre tivera o sonho de aprender a dirigir, mas nunca teve coragem, ou dinheiro, agora depois de velho estava conseguindo realizá-lo. Ou nunca tivera vontade para tal, mas a vida toda sua esposa pediu-lhe que a levasse passear de carro, e antes do fim da vida ele resolveu aprender para satisfazê-la e subvertendo a lógica, pegou o carro escondido do filho. Ou ainda alguém que sofreu algum acidente e não pôde dirigir durante muito tempo, e agora estava reaprendendo. Sei lá, podia ser qualquer coisa, mas sem dúvida, aquilo era um (re)começo.
Eu poderia me oferecer a ajudá-los, guiar o carro de volta à garagem, deixando-os fora de perigo e tudo mais. Mas imaginem que coisa frustrante. Pensariam os dois “onde estávamos com a cabeça, fazer uma coisa dessas depois de velhos”, seriam repreendidos por seus filhos, se sentiriam incapazes e inconsequentes. Preferi dar-lhes a chance de superar o desafio, com a consciência de que as chances de fracasso não eram pequenas, mas que valia o risco.
Poucas são as pessoas que se propõem a novos desafios depois de certa idade. A maioria julga-se velha demais para aprender, “novidade” deixa de fazer parte de seu vocabulário. Ajudar aqueles velhinhos equivaleria, penso eu, a dar-lhes motivos para pensar desta maneira. O clichê do momento é que devemos aprender a envelhecer. Temos que desde cedo cuidar da saúde, comer bem, fazer exercícios, exercitar a mente, que assim, chegaremos ao centenário. Mas de que valerá chegar lá se não formos capazes de aproveitar, de nos sentirmos capazes para tal?
Desde há algumas semanas, minha inspiração e motivação para isso ganharam um nome: Oscar Niemeyer. Assisti a um documentário sobre imortalidade, que inevitavelmente invocava nosso maior arquiteto. Em meio a um monte de baboseiras, o documentário mostrava uma entrevista com Niemeyer, recém saído do hospital, onde ficou internado para um cirurgia de pequeno porte (se é que aos 102 anos alguma cirurgia pode ser assim considerada), e onde, durante sua internação, se propôs a compôr um samba, em parceria com o enfermeiro que dele cuidava. O documentário mostrou o enfermeiro entoando a canção, que era de fato bonita. Mesmo que fosse pavorosa, pouco importaria.
Niemeyer possui mais de dez projetos em andamento, e numa situação onde a maioria, independente da idade, tem ideias negativistas, ou no mínimo um leve mau-humor, ele se prestou a compôr uma música! Invejável. Literalmente, uma lição de vida.
Ele foi ainda indagado se, se tivesse a oportunidade de tomar o elixir da vida eterna, o faria. Sua resposta? “Se todos tivessem a mesma chance, sim.”. Um homem de 102 anos, com todas as perdas e limitações que o tempo lhe trouxe, numa época da vida com a qual poucos desejam chegar, por imaginar as condições físicas e mentais nas quais provavelmente se encontrariam, dá uma resposta dessas. No mínimo, digna de uma boa tarde de conversa, regada a cervejinha e aperitivos. Alias quem concordar, que me convide.
No fim das contas, cheguei em casa naquele dia pensando em tudo isso. De férias, sem nada de importante para fazer, resolvi deitar no sofá para aquele delicioso cochilo de meio de tarde, embalado pela televisão ligada em volume baixo. Não sei precisar depois de quanto tempo, mas fui acordado de sobressalto, por uma barulheira infernal vinda da rua: um ronco de motor. Com uma sensação boa, preferi não checar de quem se tratava.

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Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.