quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Precisamos registrar

O ano de 2011 foi sensacional. O mundo e a forma como as pessoas estão organizando-o continuam algo um tanto desanimador (hoje li, por mais absurdo que pareça, que o homem que dirige uma nação, no caso, Hugo Chaves, suspeita que o fato de que vários líderes latino-americanos estejam com câncer faça parte de alguma conspiração). Entretanto, no meio da bagunça, à nossa maneira, conseguimos fazer mais um ano valer a pena.
Acho fundamental que registremos de alguma forma aquilo que nos fez distinguir-nos uns dos outros nesse período, afinal de contas, ninguém duvida que seja na diferença que a gente cresce, e estamos aqui pra levar a melhor vida que conseguirmos, o que só é possível se realmente enxergarmos o que é de fato bom, especificamente pra cada um de nós, e não o que a maioria nos impõe (não que por vez ou outra não possamos ou devamos aderir à massa).
Eu gosto de escrever, então, já há algum tempo, escrevo crônicas e outras formas de texto que, entre outros, me servem de recordação para as coisas importantes pelas quais vou passando. Quem acompanha meu blog sabe disso. Há quem goste de tirar fotos, quem escreva em diário, já conheci até quem fale para um gravador. Mas é importante que se registre. Nossa memória não é tão boa selecionadora de fatos importantes, por vezes deixamos pra trás momentos simples, mas formadores de caráter, em detrimento de alguma bobagem absurda que não deveríamos dar a menor importância.
Acho que vale o exercício. Quais as situações e experiências verdadeiramente importantes pelas quais você passou esse ano, que dizem respeito somente a você, e que o distingue dos demais? Afinal, todos acordamos e dormimos, nos alimentamos, fomos estudar ou trabalhar e ouvimos “Assim você me mata” querendo ou não, o tempo todo (não estou dizendo que seja ruim). Mas existem coisas que só você ou um pequeno grupo de pessoas presenciou ou viveu, e é isso que vai fazer a diferença, se você se lembrar delas.

Posso começar dando o exemplo. Neste ano eu:
- Ganhei dinheiro tocando violão nas ruas de outro país; aprendi que com um pouco de coragem e criatividade a gente se vira.
- Fui médico e palhaço na Amazônia, onde descobri que uma realidade totalmente diferente e desprovida de muitos recursos que temos, pode ser tão boa ou melhor do que a nossa.
- Recebi meus pais pela primeira vez na minha casa em Florianópolis (primeira viagem de avião da minha mãe)
- Passei quase todos os finais de semana na Real República Tcheca, onde fiz grandes amigos.
- Comecei a estudar filosofia
- Convenci um amigo a não seguir determinado rumo em sua carreira, por acreditar que aquela não era sua verdadeira vocação.
- Fiz meu primeiro parto. Foi da Júlia, que nasceu em 27/10/2011.
- Vi grandes amigos se formando médicos (aliás, sem exageros, o mundo se torna um pouco menos desanimador com a 06.1 formada).

E por aí vai. Cada um tem pra si o que fez a diferença. No entanto, esquecemo-nos que somos a soma das pequenas e grandes escolhas que fazemos diariamente. Não conseguimos responder sequer a perguntas como: Por que eu penso desta maneira? Como eu cheguei até aqui? Por que eu decidi chegar até aqui?
E o que mudou?

“What more can you be than the things they say you’ve been?” (Mick Hucknall)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Amigo secreto

Neste Natal minha família organizou pela primeira vez um amigo secreto, este ritual secular criado para entreter os participantes das festividades de final de ano nas empresas, famílias e turmas em geral, e que a mim durante muito tempo foi motivo de grande aflição.
Por longo período era minha mãe quem comprava os presentes dos meus amigos secretos. Invariavelmente Dona Neusa achava que o presente escolhido por meus amigos era caro demais; se custasse 30 reais, ela comprava algo de 25, se fosse 5 reais ela comprava um de 3. E foi assim que anos a fio eu tive que lidar com situações constrangedoras, resumidas na lista abaixo, entre os presentes pedidos e os presentes dados:

Bola de capotão – bola de plástico
Camiseta da Bad Boy – Camiseta da C&A
Jogo de Cartas Super Trunfo – Baralho comum (ou um genérico que se chamava Super Coluna)
Walkman – (e esse é imbatível) jogo de dardos

Claro que hoje em dia a gente leva de letra, o pessoal até nem pede mais um presente específico, fica a critério do presenteador, mas imagine pra uma criança de seus oito ou nove anos chegar com um jogo de tiro ao alvo pra um coleguinha da catequese que pediu um Walkman. Era no mínimo contra tudo o que a gente tinha aprendido durante o ano todo nas aulas da Tia Izildinha (a catequista) se é que a gente compreende alguma coisa quando faz catequese. A cena da entrega desse presente em particular foi bem pesada, a cara de desolamento e incompreensão do meu amigo secreto era digna de foto de livro.
Não eram raras as vezes em que, na hora do sorteio, alguém pegava um papelzinho com o nome de alguém que não gostava muito e num movimento ágil e pouco convincente amassava de volta, falava “não vale, tirei eu mesmo” e arremessava junto aos demais papelotes para que recomeçasse o sorteio. Sempre imaginei que era isso que estava acontecendo, pois comigo isso nunca ocorreu.
Amigo oculto, amigo da onça, amigo itinerante, não importa muito a variação, é talvez o único momento da festa em que todos estão realmente unidos e com a atenção voltada para a mesma coisa. O presente em si torna-se secundário, além do que, como disse uma prima minha, o valor do presente não está no preço e sim no quanto você se doou em achar algo que a pessoa realmente ia gostar. O mais bacana é ver as pessoas ali, em frente a um monte de gente, muitas delas envergonhadas, mas falando algo bacana sobre e para a pessoa que irá presentear.
Lá na casa da minha tia foi bem legal. Começamos com bastante antecedência a entrega dos presentes; mesmo assim, à meia-noite não tinham sido todos presenteados, só fomos nos dar conta do horário devido aos fogos. Apenas gritamos juntos “Feliz natal” e continuamos o amigo secreto. Palavras emocionadas, situações engraçadas, numa grande síntese do que deveria ser toda reunião de pessoas que se querem bem.
Certamente repetiremos a dose.

Aproveito para desejar a todos um feliz ano novo, independente do que ele nos traga (mas sempre esperado o melhor), que consigamos vivê-lo na medida do possível, junto daqueles que queremos e nos querem bem.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Apenas mais uma de amor (virtual)

“Conheceram-se” numa rede social. “Curtiram”-se um tempão antes de marcarem o primeiro encontro. Antes da data marcada passaram alguns dias investigando (nada muito além da Wikipedia) um pouco mais sobre Caio Fernando Abreu e Arnaldo Jabor, autores das frases do perfil dela e dele, respectivamente (depois ele descobriria que a frase nem era do Jabor, mas de um fulano qualquer). Ele aprendeu a base de “Love me two times” dos Doors e um ou outro solinho dos Beatles, caso fosse necessário provar que os interesses mostrados na página da rede eram realmente genuínos. Ela tratou de assistir Truffaut e Godard, entenda-se tão e somente “Os Incompreendidos” e “Acossado”, caso ele soubesse do que se tratava aquele interesse por Nouvelle Vague que constava em seu perfil.
Parecia-lhes interessante que se gostasse daquelas coisas, apesar de não ser bem daquilo que eles mais gostavam.
Houve bastante honestidade de ambas as partes quando jogaram as expectativas lá embaixo. Afinal de contas, das três mil fotos que cada um tirou na vida, eles sabiam que no álbum de fotografias da rede social constavam apenas uns 30 lances de sorte; poderia ser (e era muito provável) que um ser humano bem diferente se apresentasse dali a uns dias.
Encontraram-se num barzinho cult que não remetia ao gosto de nenhum dos dois, mas que ele achava que agradaria a ela, e ela a ele. Cumprimentaram-se com um beijo no rosto, ela até virou o rosto para o segundo, mas ele sentou-se sem notar. Pediram uma cerveja Long Neck, uma caipirinha de kiwi e uma porção de batata frita aos quatro queijos, especialidade da casa, segundo ele leu no site.
Começaram uma ectoscopia involuntária, sem diálogo. Ele tinha um tique estranho (se é que algum tique não é estranho, ela ponderou na hora) envolvendo a sobrancelha esquerda, enquanto ele achou que ela aparentava ter adquirido uns quilos a mais desde a última fotografia tirada e postada na rede. Nada que os tenha abalado significativamente.
Quando ela percebeu que ele estava atentando para a recém adquirida tatuagem de libélula no ombro esquerdo, resolveu perguntar se ele havia comprado a escaleta que tinha mencionado certa vez no MSN. Ele, que disse isso apenas por imaginar que tocar escaleta poderia parecer interessante, ia começar a inventar uma série de bobagens mais ou menos convincentes, ao que a banda começou a tocar “With a little help from my friends”, na versão do Joe Cocker.
- Olha, a música dos Anos Incríveis! – Ela disse.
- Você assistia? – Ele perguntou, em meio a outro tique supraocular.
E aí eles, nascidos no final da década de 80, viram nos clássicos da TV cultura um bom fio condutor para início do papo. Ele disse que não perdia um episódio sequer do Mundo de Beackman, enquanto ela achava o máximo as Confissões de Adolescente.
Passearam por trivialidades da infância, e quando ele contou que teve três bichinhos virtuais simultaneamente, ela deu uma risada tão gostosa, que ele, pela primeira vez, fez um elogio espontâneo, algo que não havia ensaiado em casa. “Que dentes brancos, você não tem nenhuma foto deles no computador”. Pelo menos na intenção era um elogio.
Ele nunca tinha visto porque ela imaginava que não convinha ter fotos mostrando risadas de orelha a orelha no álbum de fotos virtual. O conveniente era ter fotos mais ou menos de perfil, usando óculos de sol, juntando os braços para salientar o decote, foto batida de cima, e com a legenda “Por do Sol em Fernando de Noronha” ou “Barceloneta...saudadeeess”.
Ainda voltaram a falar um pouco da infância, do gravador vermelho da Gradiente, da chatice de copiar mapa em papel vegetal, mas aos poucos se deram a chance de se conhecer melhor e verdadeiramente. Foram percebendo que eram de fato diferentes daquilo que imaginavam que seria o mais bacana mostrar pela web, mas não menos interessantes. Falaram de suas viagens, de comida, das abobrinhas que postam na internet, filmes que realmente assistiram, músicas que realmente curtiam (ele descobriu que não era manjado demais curtir Paralamas e Titãs, e ela que não faz feio assistindo Spielberg e comédias românticas).
Quando ele a deixou em casa, não conseguiu nem tentar beijá-la, apesar de imaginar que ela estivesse (e realmente estava) afim. Estava acostumado a nem precisar impressionar as menininhas que ele pegava via chats obscuros com seu e-mail fake. Ali era outra história.

Encontraram-se outras vezes, foram se envolvendo, trocaram o status de relacionamento na rede social. Até trocaram juntos a frase do perfil. C. F. Abreu e o pseudo-Jabor deram lugar ao manjadíssimo Renato Russo: “quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração...”. Bateu ciúmes virtuais, por “curtição” indevida de pessoas indesejadas nos posts de um e de outro. Suicidaram-se e ressuscitaram várias vezes na rede social. Ficaram juntos um tempo bem razoável. A relação seguiu a tendência sistólica e diastólica que parece reger todo o universo; um dia encontraram páginas com perfis que pareceram ser mais interessantes, e trataram de reconstruir as versões ideais sobre si mesmos.
Nada de novo sob o Sol. Ou melhor, nada de novo inside the web.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

De onde tiraram a conclusão?

O teatro estava lotado. A peça, “Tio Vânia”, clássico de Tchekov, a preços populares e encenada pela companhia Galpão esgotou rapidamente os ingressos. Eu ocupava um lugar central na fileira K.
Eis que as luzes se apagam e no meio do primeiro diálogo uma velhinha, bem velhinha, daquelas que não convém mais tingir os cabelos brancos, e que ocupava a poltrona imediatamente a minha frente, vira-se para outra velhinha que está ao seu lado e pergunta: “Você tá ouvindo alguma coisa?”. A segunda velhinha responde afirmativamente, no que a primeira completa: “Eu não estou ouvindo nada.”
E o problema era de surdez mesmo, porque não só sua colega como todos nós podíamos ouvir perfeitamente os atores em cena. Fiquei pensando nas alternativas que sobravam para a surda senhora: 1)Leitura labial – impossível, além de exigir algum treino, ela estava na fileira J, e se o ouvido estava naquele estado, não podíamos esperar grandes façanhas visuais. 2)Dar-se por vencida e dedicar-se a elucubrar alguma coisa com seus botões, ou até mesmo tirar uma soneca, ou por fim 3) tentar entender à sua maneira, e com os recursos que lhe sobravam, ou seja, apenas os olhos e a imaginação, a história ali encenada.
Ao que tudo indica a senhora resolveu heróica, ou insanamente tentar entender a história, pois vira e mexe se virava para sua amiga e indagava alguma coisa. “Está chovendo?”, “Ele quer matar o outro?”, “Não tem alegria, nada?”. Não perguntava sem parar, contudo, quando o fazia, era em alto volume, outro sinal clássico de surdez senil, de não conseguir discernir o tom da própria voz. Por isso, e não pela freqüência, lá pelo meio da peça o pessoal nos arredores fazia um SSHHHIIUUU, para ela calar-se.
A história da peça é muito boa, com interpretações a altura. O enredo é simples e direto, com uma mensagem bem clara. Não vou discorrer sobre seu conteúdo aqui, porque há quem já o tenha feito com muito mais propriedade e no fundo, nesta situação em particular, o que mais me interessaria seria saber o que a velhinha tinha entendido daquilo tudo. E se ela tinha gostado ou não.
Qualquer coisa ali seria possível. O mais provável é que ela tenha compreendido o básico do básico, até porque no teatro a expressão corporal também é muito importante e elucidativa, parte fundamental do ofício dos envolvidos. Mas o que eu chamo de básico do básico são apenas fatos, a razão de seus acontecimentos é praticamente indedutível sem o recurso auditivo. Fulano matou ciclano. Por quê? Fulana beijou beltrano e depois ciclano? Por quê. Mariazinha chorou a peça toda. Por quê?
Fulano matou ciclano por que era contratado de Beltrano. Beltrano era casado com fulana, a quem viu sendo beijada por ciclano, que por sua vez era comprometido com Mariazinha, que sabia da infidelidade de seu amor desde o principio e por isso chorava o tempo todo. Hipótese bem razoável, apesar de enrolada no meio de tantos “que”s, mas baseada em quase nada, podendo ser completamente diferente da história real. E não pode ser também assim a própria vida?

Não precisamos nem resgatar o Mito da Caverna; o que quero dizer é inclusive um pouco diferente. Sem muitos rodeios filosóficos sobre o que é real, ou o que é a verdade e admitindo ambos serem apenas conceitos vencidos por maioria de votos, o que nos resta é simplesmente a máxima “Mais importante do que estar certo, é estar feliz.”
Pois quantos indivíduos conhecemos que parecem que passam a vida toda como uma velha surda observando os eventos que permeiam sua existência? Sempre com um entendimento parcial e subutilizando as poucas ferramentas que aprendeu a usar na vida, mal tem a capacidade de revoltar-se, mesmo por não ser capaz de compreender se há motivo para tal.
E agora, pior ainda, quem garante que nós mesmos, um pouco mais lúcidos, “com os sentidos um pouco mais apurados”, embora sem achar muitas das respostas em detrimento de maiores percepções, deveríamos ter esperança de alcançar, nem que por meio das futuras gerações, uma compreensão maior?
De qualquer forma parece não haver caminho melhor. A única via possível e a via das dúvidas. Vai ser trafegando por ela que encontraremos idéias novas, aparentemente resolutivas, tão boas que parecerão ilusórias. Apostaremos todas as fichas nelas, sem saber que foram pensadas por algum tipo de velhinha surda que teve todas as suas conclusões tiradas de uma peça de teatro.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Tudo pode dar certo

Esses dias assisti no cinema “Um conto chinês”, e por um detalhe ou outro ele me fez lembrar aquele filme do Woody Allen, “Tudo pode dar certo”, que fica ainda melhor no seu título original “Whatever works”. Comecei a viajar no meio do filme lembrando do outro, o que , como acontece com todo mundo, fez lembrar de uma outra situação, depois outra, e quando voltei a mim, tava assistindo de olhos vidrados o fundo do saco da pipoca em vez do filme na tela.
No filme do Woody, em mais um de seus renitentes finais, seu alter-ego Boris, após a contagem regressiva para a chegada de mais um ano, chega a nós expectadores e diz: “Acontece que odeio festas de fim de Ano Novo. Todo mundo desesperado pra se divertir, tentando comemorar de algum modo patético. Comemorar o que? Um passo mais próximo da sepultura? É por isso que não me canso de dizer: Qualquer amor que possa receber e dar, qualquer felicidade que possa se apropriar ou fornecer, cada breve gesto gentil, tudo pode dar certo...”

Uma das coisas das quais me lembrei durante essa viagem na maionese foi da época do cursinho. Na minha frente, na sala de aula, sentava uma menina simpática, inteligente, que sempre andava com roupas esportivas e que assim como eu prestaria vestibular para medicina. Por sentar na minha frente, entre uma aula ou outra, apesar da bitolagem inerente aos vestibulandos, vez ou outra escapava alguma trivialidade. Lá pelas tantas ela me contou que gostava muito do Garfield, aquele gato laranja.
A gente lá em casa sempre assinou a Folha de S. Paulo, e na penúltima página do caderno Ilustrada são publicadas diariamente tirinhas do Garfield. Passei então a, quando me lembrava, recortar as tirinhas. Outro dia qualquer a Sports (era assim que chamávamos a menina, não me recordo do nome verdadeiro dela) me contou o dia em que fazia aniversário, e eu decidi que naquele dia eu daria as tirinhas recortadas de presente pra ela.
E realmente o fiz. Nem tinham muitas, que fossem umas vinte, sei lá. Ela ficou bastante feliz; não poderia ela pensar que fosse algum tipo de flerte, já que eu tava de rolo com outra menina da mesma sala. Mas o fato é que foi apenas um gesto gentil, num dia especial, apesar de toda atribulação dessa época conturbada de vésperas de vestibular. A maioria dos concorrentes tava mais preocupada era em ver a pontuação dela nos simulados, e se soubesse que era seu aniversário lhe daria uma barrinha de cereais envenenada. Mas nosso sucesso independe do sucesso ou fracasso dos outros, e aproveito pra repetir os dizeres do Boris/Woody: “...qualquer felicidade que possa se apropriar ou fornecer, cada breve gesto gentil, tudo pode dar certo...”

Todo mundo passa boa parte do seu tempo trabalhando em atividades desagradáveis, aturando pessoas arrogantes, enfrentando trânsito, prazos e outras pendências. Por que há de ser eu, ou você, a fornecer mais dissabor à vida dos outros. Entenda-se por “outros” tanto os conhecidos como os desconhecidos. Cordialidade não faz mal a ninguém.
Nem precisa de tanto trabalho, do tipo ficar recortando jornal. Um sorriso no rosto muitas vezes faz uma baita diferença.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Desafinado desaforado

Um dos grandes gênios nacionais está de aniversário. Como tal (e nada mais justo) vai passar vários meses comemorando. Trata-se de João Gilberto, que chegando a respeitáveis 80 anos, fará cinco shows em diferentes cidades brasileiras, e convida seu público a participar dessa festa cobrando simbólicos mil reais pelo convite. Quanta generosidade! Afinal, como se sabe (ou como dizem), saiu pouquíssimas vezes de casa em toda vida. Pois se queremos vê-lo, e ouvi-lo, nada mais justo que desembolsar “milão”.
Alias, passados os oitenta, mesmo contra vontade do mestre, acho prudente os mais chegados fazerem uma visitinha ou outra lá no apartamento do Leblon pra ver se o isolamento continua por conta da rabugice ou se ele não contornou o Cabo da boa Esperança e ninguém se ligou. Vai ser bem desagradável encontrar o pai de um dos maiores orgulhos nacionais (a Bossa Nova) em estado de putrefação porque se acha normal e respeita-se a vontade de um sujeito que prefere não manter contato com outros seres meses a fio.
Pô, eu acho João Gilberto o máximo. Não foi só o pessoal lá do fim dos anos 50 que ficou em estado de transe quando ouviu as primeiras batidas do violão do João tocando Chega de Saudade. Eu fiquei o dia inteiro ouvindo essa música no dia que conheci. Quando comecei a tocar violão me dizia “o dia que eu conseguir tocar Chega de Saudade, não preciso de mais nada”. Esse dia chegou faz algum tempo, ainda preciso de algumas coisas, mas foi uma das sensações mais marcantes de que me lembro.
O cara consegue transformar tudo que toca em obra de arte. Seja Noel, Caetano, Cole Porter e quem mais quiser, ele encaixa na batida que ele mesmo inventou e o negócio fica genial. De quebra (por mais improvável que seja) foi mentor da galera que fez um dos melhores álbuns de música brasileira de todos os tempos, os Novos Baianos. É até compreensível que alguém assim tenha lá algumas excentricidades, mas podia também ser um pouco mais generoso.
Assim como eu, tem milhares de jovens cujos pais nem se conheciam por gente na época que a bossa estourou e que acham o João “Du caralho”. Gente que não tem “um puto” no bolso, come no Restaurante Universitário todo dia, mas daria uma economizada na grana do goró do fim de semana com um sorriso de orelha a orelha pra vê-lo tocar uma vez na vida. Poderíamos economizar, sei lá, cem, até duzentos reais. Mas 500? Mil?
Isso foi um verdadeiro coice. A gente sempre ouve dizer que o João faz questão de silencio absoluto quando se apresenta, encrenca com o som, ar-condicionado, e tudo o que tem direito. Todos que se sujeitam a vê-lo em ação sabem do risco dele abandonar a coisa no meio ou simplesmente não aparecer. Será que ele imagina que se cobrar menos de quinhentos reais vai aparecer muito farofeiro no show, daqueles que não sabe muito bem o que tá acontecendo, vê uma fila e entra, confunde João Gilberto com Gilberto Gil (não que o Gilberto Gil seja ruim), “meio que já ouviu falar” e diz que acha lindo quando ele canta Papel Machê, ou ainda que lá pelas tantas, no meio do show vai gritar “Toca Raul”?
Falta de grana está fora de questão. Apesar de ter seus arroubos a La seu Madruga e dever alguns meses de aluguel, a gente sabe que deu pra fazer um pé de meia nesse meio tempo entre o lançamento do “metade Chega de Saudade, metade Bim-Bom” e o DVD gravado em Tóquio. Além do que, ele nunca foi de gastar fortunas em festanças ou outros artefatos como vários artistas por aí. Que a gente saiba andava de Monza até um tempo atrás, um dos maiores freqüentadores do apê dele é o entregador de pizza. Qual é a do Joãozinho?
Seja lá a razão disso tudo, não dava pra deixar passar. É duro ver minha geração chegando aí “curtindo” esses ritmos do momento. Temos que mostrar que os nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não, como dizia outro dos nossos. Duvido que alguém se lembre do grande sucesso deste ano daqui a uma década. João Gilberto, por sua vez, certamente será lembrado daqui há cem, duzentos anos. Mas não pode ser ele desaforado desse jeito (Mil mangos?!). Caro João, desafinado ou não, teu comportamento é completamente anti-musical.

domingo, 10 de abril de 2011

Relação médico-pc

Não eram nem oito da manhã quando a professora de psiquiatria pediu a atenção dos alunos. Não porque conversavam entre si, mas porque seus olhos miravam ora a projeção no quadro, ora a tela do note/netbook nos quais digitavam, até que a busca por um olhar qualquer que viesse de encontro ao seu ficou angustiante demais para dar seqüência ao que dizia. Todos (ou quase todos) estavam prestando atenção à aula, mas não à pessoa que a conduzia. A professora, por sua vez, não estava brava ou indignada conosco, estava com pena.
Deixou por alguns minutos o assunto sobre o qual discorria de lado, e falou de maneira bastante franca sobre sua angústia. Falou ainda sobre as implicações desta forma de agir (ouvir o que lhe fala uma pessoa sem emprestar-lhe o olhar) em nossa futura profissão, dos prós e contras desses novos dispositivos eletrônicos em nossa área de atuação e culminou falando, de forma inevitável, sobre a relação médico-paciente.
Não foi preciso que inventassem o computador para que muitos dos médicos jogassem fora tudo aquilo que aprenderam sobre tal relação. Basta papel e caneta. É o paciente falando (quando não interrompido pelo médico) e o doutor ali, escrevendo, cabeça baixa, prontuário, solicitação de exames, receituário.
Ser um bom médico não é somente saber acertar diagnósticos e prescrever corretamente os medicamentos. Escrever sobre isso me parece “chover no molhado”. A quantidade de vezes que presenciei condutas lamentáveis em consultas médicas justificariam facilmente uma abordagem sobre o assunto, no entanto, acho bastante pertinente falar um pouco sobre outra relação que se torna cada dia mais preocupante, a relação médico-pc.
“Felizes aqueles com mais de vinte anos, pois viveram um pouco off-line”. Isso li na revista de uma companhia aérea, numa das vezes que ia ou vinha de São Paulo. E de fato, cada vez mais cedo somos apresentados aos equipamentos eletrônicos, que nos possibilitam entrar em contato com qualquer pessoa que habite este planeta, seja lá onde ela estiver, menos ao seu lado. Criamos perfil nas redes sociais que nos permite “ser” aquilo que julgamos mais atrativo para aqueles com quem desejamos nos “socializar”.
Facebook, Twitter, blogs, MSN...A pessoa cria para si e sobre si a realidade que quiser. Ela tirou 2 mil fotos na vida, das quais 1990 ficaram medonhas. Ela vai e coloca no álbum as dez que ficaram razoáveis, mas nas quais está irreconhecível (com um óculos de sol gigantesco, de perfil, fazendo bico), uma frase de impacto na página inicial (que não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que você já ouviu ela falando “em vida”) e de meia em meia hora vai informando o que vai fazer ou está fazendo (“vou tomar banho”, “estudando para a prova”, “corrida na beira-mar” - essa última geralmente é mentira) e ainda assim deixa meia dúzia de janelas do MSN abertas pois quando terminadas essas atividades voltará a sua vida virtual.

Bricadeiras a parte, é iminente a fragilidade das relações humanas nos tempos atuais, e não há como não as atrelar ao cada vez mais fácil acesso à internet. Desde a mocinha tímida detrás do seu notebook que durante a aula ouve a professora falando sobre tricíclicos e, (como ela não se lembra o que são tricíclicos) em vez de vencer a timidez e perguntar à professora do que se trata, recorre, via wireless, à wikipédia, até o rapaz apaixonado que só é capaz de se declarar por MSN, a rede possui comemorativos que fazem para muitos, essa “second life” muito mais atraente do que aquela que Deus pôde nos oferecer.
Mas quem adoecerá não será a foto de óculos gigante, de perfil e fazendo bico. O corpo terá de deixar a Matrix e procurar médico no mundo real. O Dr. Google pode até lhe dar algumas pistas do que se trata aquela dor, aquela mancha ou caroço que apareceu de repente, mas sem o médico, o Dr. Google não fará com que ela desapareça sozinha. E é aí que entramos nós, seres igualmente seduzidos pelos tentáculos virtuais, mas que para boa prática de nosso ofício, temos que oferecer nossa empatia, atenção e compreensão àqueles que nos procuram.
E tudo isso começa pelo olhar. Pode ser o único momento da vida da pessoa que está na sua frente, em que ela está encarando alguém olho no olho, mas você precisa estar preparado para isso. Você escolheu isso. E não se iluda, sua capacidade de relacionar-se e a qualidade de suas abordagens é inversamente proporcional ao tempo que você dedica ao seu pc. Talvez nossa geração não enxergue isso com tanta clareza, justamente pelo fato de ainda ter vivido um pouco num tempo em que a web apenas nos instigava a curiosidade, e não a víamos como ferramenta fundamental à sobrevivência. A geração que está vindo ai não só a vê como uma ferramenta, um meio para chegar a determinados fins, como a vê como um fim em si mesma, ao passo que a vida fora da internet num futuro não tão distante será vista como algo exótico.

Prego que a relação médico-pc tem de ser vivida em doses homeopáticas. Prego que a relação de qualquer pessoa com a internet seja desta maneira. Talvez eu seja apenas um saudosista encrencando com as modernidades e os rumos inevitáveis e inalteráveis do mundo e da nossa sociedade, mas não consigo ver uma forma em que o bom exercício da medicina dispense os fundamentos das relações interpessoais predominantes e valorizados outrora. Pense nisso.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Projeto Beija-Flor

Pouco antes de entrar na faculdade fui professor voluntário num projeto em que dava aulas para crianças carentes de uma escola pública aqui da zona oeste de São Paulo. O Projeto Beija-Flor (depois explico o nome) funcionava num espaço cedido pela Paróquia São Domingos Sávio, onde alunos de 1ª a 5ª série, selecionados pelos professores devido a problemas de aprendizado, passavam as tardes de segunda à sexta-feira, teoricamente a fim de que rendessem mais nos estudos.
O projeto era composto por pessoas com diversas formações (poucas realmente com alguma formação superior), mas com bom coração e vontade de sobra para ajudar de alguma forma aquelas crianças. A tarefa não era das mais fáceis, entendam o porquê: Pessoas graduadas para dar aula àquelas crianças, que apesar de tudo o que aprenderam (ou deveriam ter aprendido) não conseguem fazer com que elas obtenham desempenho escolar satisfatório, mandam tais crianças para “aulas de reforço” ministradas por pessoas que desconhecem qualquer metodologia pedagógica, sequer para lidar com crianças autodidatas, que dirá com as problemáticas. Soma-se a isso o fato de que criaturas no auge da infância, depois de manhãs intermináveis com lápis e borracha na mão, apareciam no projeto para fazer o apontador trabalhar, e repetir tudo aquilo que se pudessem não teriam feito nem no primeiro turno.

Meus primeiros dias de projeto foram um tanto quanto desanimadores, pois me parecia óbvia a pouca eficácia da coisa. Mas não demorou muito para entender o real intuito daquele projeto.
Todas as crianças eram provenientes de uma favela aqui do bairro. Crianças que desde cedo já são acostumadas a todo tipo de malandragem e entendem o mundo de uma perspectiva bastante ruim. Foi nos primeiros dias que vi uma menininha ensinando a outras que uma pessoa só morre quando fica velha ou “de tiro”.
Fazer com que aquelas crianças ficassem a maior parte do tempo longe deste meio, e tentar de alguma forma, em meio a exercício de tabuada e ditados, exercer alguma influência positiva em suas ações e pensamentos, era uma grande sacada. Ainda mais naquela faixa etária; era como tentar plantar uma semente e regar por um curto espaço de tempo, torcendo para que pudesse vingar por si só depois de algum tempo.

E lá ia eu as terças e sextas-feiras, ajuda-los com os deveres. Volta e meia inventava alguma atividade diferente. Certa vez peguei uma apostila de dinâmicas para crianças e adolescentes, emprestada de um amigo psicólogo e resolvi aplicar uma das que estavam descritas. Reuni-as numa das salas e anunciei “hoje a gente vai fazer um dinâmica”. “Ebaaa!!”, “Ah, tio!! Dinâmica??”. Nenhuma delas tinha qualquer idéia do que se tratava.
Pedi que cada um deles pegasse um papel e nele escreve seus cinco maiores sonhos. Depois disso feito, disse-lhes que cada sonho desses cabia numa maleta, e que todos eles estavam indo viajar, levando tais maletas. No meio do caminho aconteciam quatro diferentes infortúnios, como o aparecimento de um tigre, do qual eles tinham que escapar e carregando aquele tanto de bagagem, não era possível, então tinham que, aos poucos, irem se desfazendo das maletas, contendo os sonhos. No final, restava uma só maleta, um só sonho.
Expliquei-lhes que aquela viagem era uma metáfora da própria vida, que carregamos conosco idéias e planos, os quais muitos, devido os rumos que tomamos, tem de ser deixados para trás, mas que nem por isso deveríamos deixar de sonhar etc. Eles ouviram atentos, e no fim me olhavam com cara de paisagem. Quando eu mal percebia já estava um amarrando o cadarço do tênis do colega na cadeira, outro fabricando um aviãozinho de papel. Obviamente eles não tinham capacidade de abstrair a coisa toda e refletir sobre ela, e no fundo essa nem era a minha intenção. Mas para mim foi bem significativo. Guardo até hoje o papel com os sonhos daqueles que participaram da dinâmica, e agora transcrevo alguns, com os erros gramaticais e ortográficos devidamente corrigidos (em maiúsculas, o sonho que eles carregaram até o fim):

1) Conhecer os Rebeldes (personagens de uma novela da época)
2) Ajudar minha família
3) Que minha irmã arrume um trabalho
4) QUE A MINHA AVÓ MELHORE DO PROBLEMA QUE ELA TEM E FIQUE BOA
5) Comer um prato de macarronada

1) Criar jogos de vídeo-game e ter um também
2) Ter um carro com motor envenenado
3) IR AS ESTRELAS
4) Ser um bom agente
5) Que meu pai construa o quarto de cima

Eram crianças como outras quaisquer. As meninas com o sonho de conhecer os artistas da televisão, os meninos de ter um carro possante; que apesar de viver uma realidade difícil, entendiam o valor da família e sonhavam alcançar o impossível. Eu mesmo pensava que se tivesse a mesma idade, teria alguns deles como melhores amigos.
Houve vezes em que os levei ao parque jogar bola, empinar pipa. A dificuldade que eles tinham na separação silábica transformava-se numa habilidade incomum com a linha e cerol na mão, ou a bola nos pés. Eu ficava orgulhoso quando os via dar “relo” nas outras pipas, até saia correndo pra ajudar a buscá-las onde quer que caíssem.
Isso tudo durou seis meses. Num fim de tarde fui à vizinhança deles a fim de despedir-me. Não sabia ao certo onde era a casa de cada um. Logo que cheguei à rua, dei de cara com dois dos meninos com quem eu me dava melhor. Eles foram me guiando até a casa de cada um.
Foi uma tarefa pesada. Batia de porta em porta, dizia que estava indo morar longe e apesar de imaginar o futuro nada fácil que estava à espera deles, o mundo a oferecer-lhes as piores oportunidades, desejava-lhes toda sorte do mundo, que tudo desse certo.
Quando chegou ao final sobraram aqueles mesmos meninos que me ajudaram a encontrar todas as casas. Repeti para eles o mesmo discurso que disse aos demais, abracei-os e anunciei a partida. Não funcionou. Nem eles, nem eu fizemos qualquer movimento que indicasse que realmente estávamos com intenção de ir embora. Conversávamos mais alguns minutos e repetíamos a mesma ladainha algumas vezes.
Naquele mesmo dia tinha combinado com alguns outros amigos uma despedida numa pizzaria, de forma que eu não podia ficar ali muito tempo. Disse isso a eles, junto com “agora é de verdade, eu to indo embora mesmo”. Um deles encheu os olhos de lágrimas. Abracei-o e mirei o rosto do outro, ele estava sério, e me disse: “Não tio, eu não vou chorar porque eu sei que a gente ainda vai se ver”. E assim procedeu, não derramou uma lágrima sequer. Abracei-o também e parti. Eu também estava com o peito apertado, nó na garganta. Preferi não olhar para trás.
Estava na pizzaria, no meio daquelas disputas antológicas de quem consegue comer mais pedaços, quando meu telefone tocou. Era a mãe do menino que disse que não choraria porque tinha certeza de que nos veríamos novamente. Disse que ele chegou em casa aos prantos. Que ficou um tempão deitado em seu colo, enquanto ela explicava que a vida é assim, que as pessoas vão embora, e eles aos soluços dizendo que entendia, mas não conseguia segurar. Disse-me ainda que só tinha visto seu filho chorando daquele jeito quando o pai dele tinha falecido. Fiquei pensando se tal informação não passava de uma valorização da coisa em si, mas no fundo pouco importava. A gente vai vivendo sem saber muito o que esperar das pessoas com quem encontramos, e sem saber se vai deixar algo de bom para elas. As partidas são parte inevitável da existência, e é muito gostoso lembrar daqueles que deixamos e pensar “valeu a pena”.

O Projeto Beija-flor leva esse nome devido àquela fábula que conta sobre um incêndio numa floresta. Todos os animais correm para escapar do fogo, enquanto apenas o beija-flor segue em sentido contrário. O elefante curioso pára e presta atenção no que faz o beija-flor. Quando entende, indaga-o: “Beija-Flor, pra que você se presta ao trabalho de ir até o rio e pegar apenas uma gota de água e depositar no meio do fogaréu? Não vai adiantar de nada!” E o beija-flor responde: “Estou apenas fazendo minha parte. Quem sabe se cada um fizesse a sua...”

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Cinco filmes, cinco dias, vinte reais

Poucos momentos são tão aborrecidos como os que minha mãe anuncia que vamos ao shopping porque ela e minha irmã vão comprar roupas para mim. Sim, já tenho lá meus vinte e tantos anos e ainda é minha mãe quem escolhe minhas roupas. Nenhuma vergonha quanto a isso, e se dependesse de mim poderia permanecer assim até que fosse chegada a hora de um de nós ir para debaixo da terra.
Sou bem desligado nesses assuntos, quase sempre aprovo o que minha mãe e minha irmã compram. Não faço a menor questão de acompanhá-las em sua peregrinação de loja em loja, nas quais passam horas intermináveis, felizes da vida por escolherem vinte e sete peças de roupa diferentes e na maioria das vezes não levar nada. Sempre que era convecido ou obrigado a ir junto, escolhia a primeira coisa que via pela frente, para indignação e frustração de minha mãe. Não à toa, quando eu era pequeno, um dos pesadelos mais frequentes tinham como cenário aquelas grandes redes de lojas de roupas, tipo a CeA, onde eu invariavelmente me perdia de meus pais e aqueles cabideiros ganhavam vida e passavam a me perseguir pela loja sem fim.

Em contrapartida, há escolhas muito mais agradáveis, como um livro para presentear(-se) ou um filme para alugar. Numa livraria ou locadora sim, posso passar horas a fio e, mimetizando minha mãe, tomar nas mãos e fingir que vou levar vinte e sete itens e muitas vezes levar um, ou nenhum. Ainda por cima sem o contrangimento de ter de passar dezenas de vezes pelo fiscal do provador, que sabe muito bem que as pessoas que realmente intencionam comprar alguma coisa, geralmente não passam por ali mais do que duas ou três vezes.
Houve um tempo em que eu e um dos amigos com quem divido o apartamento em Floripa alugávamos no mínimo um filme por semana, bolamos até um complicado método na seleção dos títulos, mas que sempre terminava com o palpite do Emanuel, funcionário meio gordo, meio japonês, única pessoa realmente confiável naquele lugar. Digo isso porque pessoas como o Emanuel são estremamente raras hoje em dia, o que parece até um paradoxo.
Não sei que critérios os donos de locadoras utilizam para escolher seus funcionários, mas é arriscadíssimo pedir a opinião deles na hora de escolher um filme. É incrível a capacidade que eles tem de juntar falta de bom senso com mau gosto e dar sempre os piores palpites. Houve época em que já quis ser dono de locadora, eu mesmo seria o palpiteiro da clientela. Já cansei de planejar este empreendimento, depois de passar pela fase em que a dúvida era ser bombeiro ou marceneiro.
Em minha imaginação, minha locadora não faria parte de uma grande rede, uma Blockbuster, e sim uma pequena locadora meio mal localizada, mas com o diferencial das boas indicações e por isso muito bem difundida e frequentada, devido ao boca a boca. Claro que eu não poderia trabalhar lá em tempo integral, por isso, inevitável contratar ao menos um funcionário, que passaria por um critério de seleção que iria muito além do 2o grau completo.
"Fulano, o que você sabe sobre Hitchcock? Truffaut e Godard? Gosta dos irmãos Coen? Qual é a melhor atuação do Marlon Brando, em sua opinião? O que pensa sobre Kubrick? E Spielberg? Cite vinte filmes do Woody Allen, eleja seu favorito e justifique. O que sabe sobre cinema nacional? Qual seu filme favorito?"
Talvez a entrevista começasse por essa última pergunta, pouparia tempo. Outro amigo meu contou que certa vez estava numa roda de amigos conversando sobre cinema, cada um dizendo qual era seu filme favorito, quando um sujeito me lança "Debi e Loide". Todo mundo olha com cara de espanto, no que ele se explica "Calma pessoal, me refiro ao Debi e Loide 2 - Quando Debi conheceu Loide". Se um camarada desses entrasse na minha locadora pedindo emprego seria abatido a tiros.
A gente cresce e percebe que essas coisas geralmente não dão muito certo, no náximo eu mesmo seria contratado de uma videolocadora e na melhor das hipóteses seria considerado um novo Emanuel. Infelizmente hoje já não posso mais imaginar que serei bem sucedido em minha profissão a ponto de poder investir na abertura de minha própria locadora. Não por achar que não obterei êxito como médico, mas porque as videolocadoras estão condenadas ao seu fim.

Atualmente não faz o menor sentido pagar oito reais (em média) por um lançamento 24h. É possível baixar filmes da internet com qualidade blue-ray gratuitamente, pratica cada vez mais comum e que faz com que as locadoras aumentem o preço da locação sem qualquer escrúpulo. É o mesmo destino reservado às lojas de cds e qualquer mercadoria que possa ser adquirida pela rede. A venda de tais produtos serão restritos cada vez mais aos colecionadores.
Apesar de também ser usuário do utorrent, sempre que posso prestigio as escassas promoções do tipo "cinco filmes, cinco dias, vinte reais", que ainda existem numa locadora aqui perto da minha casa em São Paulo. Lembro-me de uma das vezes que lá estive; ouvia palpites sóbrios de um funcionário sobre uns filmes do Oliver Stone, quando um grupinho de garotos, de uns onze ou doze anos, se aproximou com murmúrios de "pergunta você", "não, não, pergunta você", até que um deles se aproximou do funcionário e meio sem jeito indagou "Você tem Espantalhos 2?". Achei graça da coisa, imaginei que cenas como essa acontecerão cada vez menos, dada a iminente obsolescência do estabelecimento e, após alguns instantes de pesquisa no sistema, o funcionário volta e diz: "Desculpe, não encontrei, mas temos alguns bons desse gênero em VHS". "Ah! Não, obrigado". Ainda pudemos ouvir quando, imaginando-se longe o suficiente para não ser ouvido, um dos meninos perguntou ao amigo o que era um VHS.
Querendo ou não, há processos e rumos contra os quais não temos muito como lutar. Mas não tenho dúvidas de que, perante a traquinagem de um neto ou apenas para argumentar longevidade, ainda direi: "Sou da época em que se alugava filme em locadora e se copiava mapa em papel vegetal".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Retrato da saudade

A sequência lógica da coisa é viver, pensar, digerir e escrever. Desde que iniciei minha viagem pela Europa, quando acontece alguma coisa divertida ou diferente penso “quando voltar vou escrever sobre isso”, e de fato há bastante coisas sobre as quais pretendo discorrer, assim que tiver um tempo exclusivo para pensar sobre elas e arranjá-las da melhor forma no papel. Entretanto, por ora estou em Heidelberg, pequena e acolhedora cidade ao Sul da Alemanha, em meio a um estágio que serviu de desculpa primordial para tal viagem, com uma coceira insustentável nos dedos. É preciso escrever.
Até porque a mim não soa tão comovente alguém escrevendo “sentia saudades” ou “senti saudades”. Muito mais arrebatador um “sinto saudades”, e realmente as sinto. Andava procurando a melhor forma de expressá-la, talvez uma frase bacana e simples, emblemática ao menos a ponto de quem ler copiar e colar no nick do MSN, e o que de mais genuíno vem à cabeça é “Puta que pariu! Que saudade da terrinha!”
O Amir Klynk tem frases bacanas, daquelas que a gente que escreve fica pensando “puxa vida, como não tive essa sacada antes” sobre viagens e o viajar. Diversas vezes pensei nelas durante minha viagem, mas o que mais vinha à mente durante este período, sem mentir, era o Jorge Ben Jor cantando “moro num país tropical, abençoado por Deus...”
Que vontade absurda de comer feijão com arroz e carne moída! Pastel de feira com caldo de cana, então! Melhor até mudar de assunto. Saudade de ouvir todo mundo falando em português, de me sentir em casa, de realmente estar em casa. Dormir encostado no travesseiro já moldado ao formato da sua cabeça, embalado pelos fogos e gritos de “gol” numa quarta-feira a noite (os campeonatos estaduais já começaram!), acordar com o vizinho inconveniente ouvindo pagode enquanto lava o carro na garagem, as dez da manhã.
Saudade de fazer aquele churrascão com a rapaziada, pão com lingüiça e cerveja a dar com pau. Roda de violão em Canasvieiras, as loiras do curso de farmácia desfilando no bar do CCS, fazer esquenta para uma festa universitária qualquer. Agora é férias pra todo mundo, mas essa lonjura toda antecipa e aguça as sensações.
É mister, entretanto, deixar claro que isto aqui não se trata de lamúrias proveniente de dias mal aproveitados. Longe disso! Caríssimos, não carecerão de fartas risadas e nós na garganta, tudo a seu tempo. Mas é que essa coisa da saudade, exige um modus operandi diverso, escrevo agora enquanto os outros dormem, para, além de tudo, ainda poder esbanjar como num poema da antologia de Vinicius e ao final, no canto direito escrever “Heidelberg, 2011”.
Saudade tenho ainda de acordar num domingo e ao som de Billy Holliday descer as escadas do sobradinho lá de São Paulo e sentir o cheiro da massa que meu pai prepara, percorrer a casa e quase tropeçar no Pingo, que me levaria correndo até provavelmente a lavanderia, onde minha mãe estaria estendendo contente minhas roupas (não que ela goste de estender roupas, mas é que como não moro com eles, até ver-se estendendo minhas roupas, sinal de que estou em casa, faz com que seu dia seja melhor). Saudade de abrir o jornal e planejar o que fazer no próximo final de semana, ler a coluna do Drauzio, do Scliar ou do Rubem Alves. Até a da Barbara Gancia valeria. E quando desse a hora do almoço acordar minha irmã com um grito ao pé da escada (relembrando que é uma manhã de domingo).
Não falta tanto, São Paulo em três semanas e Floripa em seis. Ao voltar não peço nada. Claro que será bem bacana ser recebido com um pratão de arroz, feijão e carne moída; um churrasquinho de comemoração também não cairia mal. Caindo, no entanto, de forma inevitável no velho clichê, o que mais vale é entender que toda dessa saudade nada mais é do que o atestado definitivo de que a vida andava boa, de que vivo cercado de pessoas fantásticas, e fica a expectativa de que este período de alguma forma esteja servindo de aprendizado para aproveitar melhor essa coisarada toda.
Puta que pariu! Que saudade da terrinha!

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.