domingo, 4 de junho de 2017

Por que se formam as nuvens

               Durante um tempão eu não aceitei que a formação das nuvens fosse meramente uma etapa do ciclo da água. Tudo bem que a água estivesse envolvida, mas isso nunca explicou a identidade das nuvens. Era como ver uma pessoa e ficar satisfeito com o corpo físico. Isso não é a pessoa. As nuvens, pra mim, não eram água.

                Na minha cabeça, as nuvens carregavam sonhos. Os nossos sonhos, ou talvez todos os sonhos dos seres viventes. E pra mim isso tinha uma forte relação com o fato de eu perceber muito menos nuvens aos domingos. As nuvens se formavam porque a gente deixava os sonhos escaparem, sem ter muito tempo pra sonhar. Todo mundo ficava fazendo um monte de outras coisas nos dias de semana, e aí não sonhava. Os sonhos subiam e ficavam armazenados nas nuvens. No domingo não, como ninguém trabalhava, ficava sonhando e não tinha nuvem.

                Por isso que as nuvens inclusive tinham um número infinito de formatos. Cada um sonha uma coisa. E mesmo que ache que sonha parecido, não é. E lógico que elas mudam de tamanho e forma o tempo todo. Não é assim mesmo com os sonhos? Daí quando chovia nunca era um grande problema, porque os sonhos voltavam pras cabeças das pessoas. Não que as gotas de chuva carregassem os sonhos, mas de alguma maneira onde a chuva caia, caia também o sonho. Só não conseguia entender porque às vezes as nuvens se formavam num lugar, e iam chover em outro. Vai ver que era importante outras pessoas continuarem alguns dos nossos sonhos.


                Raios e trovões não faziam parte da minha teoria. E não quero intrometer raciocínios de agora com a imaginação daquele tempo. Tempo em que olhar pras nuvens era imaginar sonhos, mesmo que se parecessem com dragões ou tartarugas; era sonho de alguém, e tinha de ser respeitado. Por fim, confesso que só me incomodava um pouco que as nuvens do Maurício de Souza fossem algodão doce na horizontal. 

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Reykjavík Karaoke Bar

Mais insólito pouco possível, ou bem improvável. Havia há pouco adentrado a um bar com karaokê no centro de Reykjavík, com uma turma de mais ou menos uns dez orientais felizes da vida com sua excursão cheia de selfies à terra de Bjork, após presenciar pela primeira vez a aurora boreal. Caso seguisse alguma espécie mais convencional do que habituara a chamar de lógica, aquela não parecia a sequencia natural dos fatos. Talvez parecesse mais razoável que, após presenciar as luzes do norte, a pessoa parasse para digerir o momento, dormir feliz da vida, ou que tivesse um período razoavelmente mais introspectivo do que costuma permitir um bar com karaokê. Mas lá estavam eles, em meio a islandeses bem mais pra lá do que pra cá, tentando ambientar-se, e arrumando coragem para cantar algo.
Em meio às pastinhas com as listas de músicas surgiram duas figuras femininas. Mãe e filha islandesas, grandes e bonitas, a mãe mais do que a filha, em ambos os aspectos. Puxaram papo e ele muito se interessou. Hoje não seria capaz de se lembrar dos temas, mesmo porque para ele aquilo parecia interessante, irreverente e um tanto insólito. Antes mesmo da emergência de qualquer assunto lembra-se que a ideia de levar alguma delas para a cama seria algo muito mais digno de nota nas futuras conversas em bares tupiniquins do que presenciar (como acontecera há poucas horas) umas luzes bruxuleantes no céu, próximas ao círculo polar. Parecia, por algum motivo, que estar tão longe de tudo (da perspectiva não islandesa de “tudo”) facilitava que coisas interessantes, irreverentes e insólitas acontecessem.
Determinado papo furadíssimo irrompeu numa bufada quase retumbante, quando ele disse as suas interlocutoras que pareciam irmãs. “The old trick”, respondeu a mãe, e ele perdeu ali todos os pontos. Ainda num movimento completamente humilhante pediu-lhes uma selfie. Tentava converter seu fracasso sem tamanho num futuro “caça-likes” nas redes sociais e invencionices nas tais futuras conversas de bar. Lembrou-se que há poucas horas tinha achado um despropósito espetacular e um descaso com o “verdadeiro sentido da vida” os orientais e suas sem-número de selfies na vigência da aurora boreal. Não soube concluir se havia equivalência para uma justa comparação, mas não deixou de sentir-se um pouco mais autoderrotado.
Bebericou algumas cervejas cujos preços não permitiriam que ele mesmo se embriagasse (“aqui a única coisa barata é a água”, sempre falavam os honestos islandeses) e, como ele diria depois, “meio que do nada”, quando uma turma mista e muito alegre de malaios e islandeses iniciou “My Way” ao microfone, aproximou-se outra senhora islandesa. Em idade, poderia ser uma mãe. Talvez avó.
- O que é que você vai cantar?
- Não sei, estou pensando em Bee Gees (mentira; estava pensando em Kaoma – “Chorando se foi quem um dia só me fez chorar”, única música brasileira do cardápio - já que naquele instante a noite não parecia reservar nenhuma outra situação icônica – “e por que é que eu perseguia isso?” – muito tempo depois se perguntaria). Talvez “How deep is your love”, o que a senhora acha?
                - Eu acho que se você cantar com confiança, todo mundo vai gostar. Aliás, qualquer coisa que você fizer na vida tende a ser assim. Só não me chame de senhora.
E piscou-lhe.

domingo, 27 de março de 2016

O momento brasileiro e uma grande oportunidade para a medicina

“Se soubesse que algo me seria útil, mas prejudicial a minha família, eu o tiraria da minha mente. Se conhecesse algo que fosse útil à minha família, mas não a pátria, procuraria esquecê-lo. Se conhecesse algo que fosse útil à minha pátria, mas danoso ao gênero humano, eu o consideraria um crime”.
(“Pensamentos” – Montesquieu)

“De todas as coisas existentes algumas estão sob o nosso poder e outras não.
...A realidade do bem está naquilo que está debaixo do seu controle”.
(“A Arte de Viver” – Epicteto)

                Vivemos um momento importante no Brasil. Muitas pessoas estão descontentes com diversas questões de ordem política e social, e vivem a angústia de se imaginarem de mãos atadas, de não conseguirem contribuir para a mudança daquilo com que não concordam. A verdade é que, no fundo, sempre há o que fazer. Para quem tem a intenção profundamente sincera de fazer o bem, nunca faltará lugar. Por vezes a angústia vem das ações possíveis não surtirem uma mudança de amplo alcance, mas há lugar para todos na construção de um país melhor. Num determinado segmento da sociedade, a oportunidade está escancarada. Trata-se da medicina, através da Medicina de Família e Comunidade.
                Sabemos que um dos vários pontos frágeis do sistema é a saúde. O SUS é uma das grandes conquistas sociais do Brasil nas últimas décadas, mas até hoje não alcançou toda a sua potencialidade, dentre outros porque não foi acompanhada por uma adequada oferta de recursos humanos, especialmente médicos, para que ele pudesse se estruturar de maneira eficaz.
                Há muitas décadas a educação médica brasileira volta a formação dos médicos para o ambiente hospitalar, orientados para as especialidades focais (como cardiologia, dermatologia, radiologia) em detrimento da formação generalista. Isso não quer dizer que as estas especialidades não sejam importantes, muito pelo contrário, mas da forma como está organizado, com a quantidade atual de especialistas em cada área, surge um sistema de saúde oneroso e pouco resolutivo.
                Em qualquer país que tenha se proposto a assegurar um sistema de saúde público e universal, e que tenha dado certo, a exemplo de Inglaterra, Canadá e Espanha, é fundamental que ele seja alicerçado numa Atenção Primária a Saúde (APS) forte. É neste cenário que se inserem os Médicos de Família e Comunidade (MFC).
O MFC é um profissional generalista, que acompanhada os indivíduos, suas famílias e a comunidade (por trabalhar sempre com uma população fixa) durante toda a sua trajetória de vida. O MFC tem ampla formação, por isso é capaz de realizar desde consultas de pré-natal, passando pelo tratamento de problemas crônico-degenerativos, infecciosos, emocionais, acompanham o processo de morte, além de fazer alguns procedimentos cirúrgicos, caso o local onde trabalhe forneça condições para tal.
                O MFC não fica somente no consultório, ele também faz visitas domiciliares a pessoas que não possuem condições de ir à Unidade de Saúde, bem como realiza outras atividades em outros espaços da comunidade. Uma das grandes vantagens de acompanhar as pessoas e suas famílias por um longo período é a criação do vínculo. Por acreditar na determinação social como parte do processo saúde-doença das pessoas, ou seja, perceber a influência da relação da pessoa com o ambiente onde vive, onde trabalha, com as pessoas com quem convive e consigo mesmo, o MFC consegue atuar numa esfera que vai muito além da prática clínica.
                Isso exige uma série de competências que passam das habilidades de comunicação a um engajamento sócio-político, para que a figura deste médico não seja apenas um reprodutor do status-quo, onde vê no paciente apenas uma máquina que é consertada e continuar sendo explorada em seu trabalho. Quando consegue transpor esta barreira, o MFC é, dentre as opções postas hoje para quem se gradua em medicina, aquele com maior potencial de transformação social, podendo contribuir, além de tudo, com a formação de sujeitos mais autônomos, mais críticos, com maior capacidade de lutar por si mesmos e por um país melhor.
                Apesar dos esforços feitos recentemente, como a mudança nas diretrizes curriculares dos cursos de medicina e a expansão das vagas de residência em Medicina de Família e Comunidade, há de haver um maior interesse por parte dos médicos e estudantes de medicina de se enveredarem por este caminho.
                Sabemos que são muitos os entraves para essa escolha, dentre os quais o não reconhecimento e valorização pelos pares de profissão, pela família e outros setores da sociedade. Para superar isso, vários outros esforços simultâneos tem de ser feitos, como ampla divulgação em vários veículos midiáticos. (Quem sabe inclusive um Médico de Família como protagonista da novela das oito?).
                Os desafios são grandes, mas está lançado o convite: Médicos e futuros médicos, existe a possibilidade de um papel muito importante, um protagonismo na construção de um SUS melhor, e de um país melhor. Ela se chama Medicina de Família e Comunidade. Vamos nessa? 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O prêmio da Mega-Sena

(Baseada em fatos reais)


Em um momento indefinido dos anos 80, numa cidadezinha do interior do Ceará, o pai chegou triunfante à casa:

- Ganhamos na Mega-Sena!

(Silêncio e dúvida de poucos segundos)

O pai saca o bilhete do bolso e estende ao alto chacoalhando a mão, e como se isso fosse a confirmação de alguma coisa, inclusive da veracidade da informação, a mãe larga as panelas no fogo; as crianças, os brinquedos no chão, e vão abraçar o pai. Começam a pular em círculos dizendo “êêêêêê”, e algumas outras coisas indiscerníveis, o que chamou atenção do cachorro, que começou a latir e rodopiar junto aos donos.

Passados os primeiros momentos de euforia, a mãe volta às panelas para que não queimasse a refeição e as crianças voltam desconcentradas à brincadeira, sabendo que algo muito bom estava acontecendo.

Na janta, o pai e a mãe explicaram mais ou menos o que significava ganhar na loteria. As crianças ficaram felicíssimas, e não dormiram a noite, pensando, o menino numa bola de capotão novinha, que no fundo ele pretendia guardar e continuar jogando com a velha de sempre pela vizinhança, e a menina numa boneca gigante, quase do tamanho dela, para servir-lhe de melhor amiga e confidente, num momento em que começava a ajudar a mãe nos afazeres domésticos.

 Pai e mãe também não dormiram, parte por ficarem pensando numa casa nova, grande e bonita; ele num videocassete, animais e ferramentas, ela nuns itens que conhecia da novela e, não estava assim tão claro para eles porquê, mas vinha-lhes também a imagem da chuva; parte por ficarem comemorando à moda adulta.

O pai no dia seguinte levantou cedo, mal conseguiu comer o desjejum e convocou a mãe. Antes de saírem, pegou no quarto das crianças as mochilas que usavam para carregar o material escolar, e anunciou:

- Hoje vocês não saem de casa, precisamos das mochilas para buscar o prêmio. Fiquem aí e não falem com ninguém.

Quando reivindicaram o prêmio, ratificaram-lhes o status de ganhadores. Entretanto, provavelmente pelo frenesi do momento, o pai se atrapalhou um pouco na conferência dos números. Ganharam, porém na quadra.

Depois de um tempo que hoje ninguém sabe precisar bem, voltaram os pais à casa com os frutos do prêmio, que de fato quase coube nas mochilas: uma bola de capotão, uma boneca de tamanho razoável, um videocassete, um item decorativo, supostamente parecido com o da novela, a feira da semana e um grande osso.

Os pais, por conta disso, semi-dormiram algumas noites, frustrados. Outras frustrações vieram, e volta e meia eles voltavam a semi-dormir. As crianças, enquanto foram crianças, viveram o que imaginavam ser felizes para sempre. Já o cachorro, embora mais alegre ao ver rodopios pela casa, continuou sendo feliz, como foi desde sempre.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Quando chega a hora n.2


Pode ser numa loja de discos
No banheiro, no elevador
No bar, no laboratório
Ou até mesmo num balão


Pode ser tomando vinho e comendo queijo
Fazendo sexo,
No meio da consulta médica
Ou até mesmo contemplando um outdoor


Pode ser lendo Drummond,
Ouvindo Phillip Glass, assistindo Bergman
Na atenção ao pedinte, à Marilena Chauí
Ou até mesmo à moça do tempo


Pode ser em novembro,
Em dia santo, na chuva de granizo
Vendo a aurora boreal...
Pode ser que entendamos.

domingo, 13 de setembro de 2015

Dois (1995 - 2015)


                Eu tinha oito anos quando meu primo Inha (Cesar – Cesinha – Inha) apareceu lá em casa com o CD “Dois”, da Legião. Inha, cinco anos mais velho, era uma referência (ainda mais dos oito para os treze). Lembro que colocou direto “Eduardo e Mônica” (faixa 4), que eu achei o maior barato. Divertiu-me muito a história do rapaz que ia pra aulinhas de inglês, gostava de novela e jogava futebol de botão com seu avô, e da moça que tinha tinta no cabelo, e do encontro em que ela foi moto e ele de “camelo”.

                Gostei tanto que comprei (meus pais compraram) o CD por causa da música, nas Lojas Americanas. Tive o CD por quatro anos, até que troquei com a menina “que eu gostava” (era assim como nos referíamos às paixões platônicas de outrora), pelo CD “Só no Forevis” dos Raimundos. Fazia sentindo: eu assistia MTV, que ajudou no estouro comercial da banda (que de fato teve momentos inspirados) e afinal, qualquer coisa fazia sentido na aproximação com a menina “que a gente gostava”.

                Vinte anos depois (semana passada) resolvi ter novamente o álbum “Dois”. Com uma vitrola e um iPhone, minha dúvida era se garimpava um vinil no sebo ou baixava o álbum no iTunes. Optei pelo segundo, porque queria ir ouvindo o som no carro indo para o trabalho (desculpa de preguiçoso). Mas ainda vou comprar o bolachão também.


Neste hiato passei a ouvir outras faixas: “Tempo Perdido”, “Índios”, “Quase sem querer”, fase em que aprendi a tocar o violão que meu pai nunca tocou, mas cuja existência descobri lá em casa. Guardado num case cheio de revistinhas com várias músicas da própria Legião, significou o passo inicial de um hobby que ainda mantenho. Nesse hiato surgiram para mim várias histórias e cenários. Surgiu George Orwell, Tcheckhov, Epicteto, Graciliano Ramos, Woody Allen (Godard, Mutantes e Rimbaud também); surgiu a medicina, a filosofia, a Amazônia, Islândia, Egito, Bolívia, pessoas incríveis, e com tudo isso, surgiu também uma nova percepção do mundo.

                Interessante transitar por passado e futuro, perceber-se mudado, ouvir “Eduardo e Mônica” e achar graça da graça que se achava; gostar mais de pensar “se existe razão nas coisas feitas pelo coração”, e imaginar se aos quarenta e oito isso será motivo de graça também.

                As possibilidades são infinitas, e paradoxalmente aceitamo-las cada vez menos. O perigo que sempre se aproxima é imaginarmos que é chegada a hora da versão definitiva de nós mesmos, e do que entendemos do mundo. Distanciar-se disso exige coragem e autoconhecimento (conhecer-se é saber-se não definitivo). O trânsito entre inocência e a viagem na maionese é menos danoso do que a percepção de que se tem tudo nas mãos, inclusive a verdade. Curioso: quando conversamos com os ditos “donos da verdade” umas das frases que mais ouvimos é “isso não pode”. Quando se é simples de coração, a única coisa que não pode é ser infeliz.

             (“...E quem irá dizer que não existe razão”)

domingo, 3 de maio de 2015

Saco dos Limões


            Acho o maior barato morar no Saco dos Limões. Embora siga dizendo que, caso um dia more em definitivo em Florianópolis, quero ir para o sul da Ilha (o que com frequência faz com que os ouvintes me indaguem qual meu conceito de “definitivo”, já que moro na cidade há quase 8 anos), sinto-me numa feliz e tranquila passagem por esse bairro com ares de vila.

            O bairro parece ter sido meio eclipsado pelo crescimento dos bairros vizinhos (centro e arredores da UFSC), que lhe projetaram uma sombra na qual pouca coisa cresce, como se fosse uma planta com crescimento restrito dada a quantidade de sol insuficiente para uma fotossíntese decente. Resultado: O Saco dos Limões parou no tempo, e eu gosto muito disso, pois acho que também nós deveríamos, em vários aspectos, ter parado no tempo.

            O legal por aqui é que há coisas que só persistem por estar no bairro. Noutro mais moderninho nem abririam. Aliás, ganhamos recentemente uma biboquinha que vende mini-pizzas fora de série. Pizza Roots, o nome. Um casalzinho simpático, que capricha no recheio e na massa fina. Uma das melhores da cidade, mesmo! Tô viciado e já levei gente lá. O lugar parece (aliás é) uma garagem, onde improvisaram 3 mesas, duas de plástico com toalha de mesa xadrez, tipo cantina italiana, e outra mesa de madeira, sem nada. Incrível!

            Na mesma rua (a principal do bairro), tem os estabelecimentos que devem figurar entre os mais antigos da cidade. Entre eles a Barbearia Silva, com o próprio Seu Silva cortando cabelos há (segundo ele; e por que eu duvidaria?), 58 anos, só ali parece que há mais de 30. Descendente de uma família do ramo, teve o pai e os irmãos no mesmo oficio, e conta essa história quase toda vez que vou cortar o cabelo ou fazer a barba, junto aos inevitáveis comentários sobre o vento sul, as catastrofes naturais, os impostos e toda aquele papo inerente a qualquer barbearia tradicional do mundo. Deve fazer parte da formação deles.  

            A 50 metros da barbearia fica a Ilhafarma (me surpreende muito não ser com ph). Deve ser o estabelecimento mais antigo do bairro, o letreito mostra o número do telefone ainda com 6 digitos, e a cor dele, outrora branco, não tá nem amarelado, tá mostarda mesmo. Caso alguém duvide da antiguidade da farmácia, é só dar uma olhada em seu interior: prateleiras com uma série de caixas embrulhadas em papel pardo, e um dono (ou funcionário) barrigudo, de cabelos loiros compridos, bigode volumoso e um ar de que não sai de trás do balcão desde os anos 80. Talvez para abrir a porta, daquelas cinzas que rolam de cima pra baixo. Acho que eles se especializaram em emplastros e poções, e estão ali por puro hobby. Tem de ter outro tipo de renda, tem de ter! Nunca vi ninguém entrando lá.

           
            Gosto muito de passear pelo bairro, sempre faço uns caminhos diferentes, observando as ainda preservadas casas térreas, que não cederam muito espaço aos altos edifícios, embora inevitalvemente (?) cada vez mais numerosos no entorno. Muitas senhoras e senhores nos quintais, num silêncio que só é quebrado pelos horários de entrada e saída da criançada no colégio Getúlio Vargas, ou sazonalmente, pelo ensaios da Consulado, escola de samba daqui do bairro. Nunca fui num, mas dá pra ouvir do quarto, e é bacana também, ano que vem vou “de certeza”.

            Esse clima nostálgico ainda se mescla com a beleza de ter a vista toda da baia sul, o Cambirela ao fundo, os aviões indo e vindo do aeroporto Hercílio Luz ao longe. A coisa mais gostosa que tem é acordar com qualquer humor e ir correr, ir ao trabalho, ou não ir a lugar nenhum, e ficar uns instantes só olhando essa paisagem. Não importa nada, tá tudo ali, do mesmo jeito, imponente, querendo fazer a gente entender alguma coisa.

            O que certa turma não entende é essa vocação natural do bairro para coisas antigas: paralelepípedos, camurça, Monza Hatch e afins, e inventaram de construir um prédio alto, todo desproporcional a seja o que se queira considerar. Batizaram de Novo Centro, e a construção já está tapando metade da vista daqui pro Cambirela. Não podia dar certo. Alias, eles estão contruindo desde que cheguei aqui, há mais de 1 ano, e não conseguem terminar. Deve ter alguma energia coletiva sugando a capacidade de trabalho do pessoal. Mas a gente sabe como as coisas são, uma hora fica pronto.

           
           Acho que eu deveria tirar uma foto da sacada. Mesmo que eu não quisesse, sairia em preto e branco. Guardar e mostrar o Saco dos Limões daqui umas décadas. Nela teria as casas baixas, a baia Sul, o Cambirela (ou metade dele), algum avião voando baixinho rumo ao aeroporto e, mais do que isso: haveria a sensação de um silêncio gostoso, quase uma manifestação às avessas, de uma pequena parte de Floripa que, a sua maneira, foge a essa gritaria infértil de um momento histórico desengonçado e careta.

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.