quarta-feira, 21 de julho de 2010

Num sobradinho da cidade grande

Chovia muito. A menina estava indo tomar banho quando a campainha tocou. Não esperava visitas, o cachorro foi à janela e com latido característico informou que tratava-se de pessoa estranha. “Se for importante, vai voltar depois”, pensou a menina ao fechar a porta do banheiro. Mal tirava a camiseta quando a campainha disparou, o cão intensificou os latidos e, mesmo com a chuva torrencial que caia lá fora, pode ouvir o som do portão sendo arrombado.
A menina então se vestiu e foi esconder-se no quarto do irmão. “Vai, vai, vai”, diziam vozes perto da porta da sala. O cão agora se esgoelava, relâmpagos se encarregavam de dramatizar a situação. A menina então pega o telefone e disca o número da polícia. “Para realizar seu cadastro disque 1” responde a gravação do outro lado da linha, enquanto rosnados desesperados do cachorro anunciavam que ele e os assaltantes encontravam-se cara a cara.
Passos pelas salas, corredores, subindo as escadas, a menina que obviamente desistira de informar a polícia, tenta chamar atenção do vizinho do lado jogando canetas em sua janela. Lá se vai a coleção de canetas do irmão: a alemã e a espanhola que ganhara de amigos viajantes, a de fabricação limitada comemorativa do centenário de um banco, a americana cromada. Nenhuma delas foi capaz de chamar atenção do senhor aposentado que dormia as duas da tarde.
Os assaltantes entram no quarto da menina, se apossam de algo e rumam para o quarto do irmão. Uma tênue sombra se projeta pela porta do quarto e a menina corajosamente se impõe:
“Quem tá aí? Eu já chamei a polícia” - Não houve contato visual, e neste momento muitas coisas aconteceram simultaneamente. Objetos sendo derrubados, nem dava pra saber quantas pessoas tinham na casa, se duas, três ou quatro. Do cachorro não se sabia mais, podia ter infartado, sido assassinado, ou simplesmente desistido do combate, mas não emitia sons. Ouvindo os passos atrapalhados a menina então muda de tática e passa a gritar por socorro pela janela do quarto. Muito alto, chama atenção da vizinhança toda. Apesar da chuva batendo nas calhas, de trovões e das janelas fechadas, conseguiu ser ouvida. Dificil era entender o que se passava. Uma senhora na rua de baixo tentava convencer a mocinha que via pela janela: “não pula!”, enquanto agora, só agora, o vizinho do lado aparece: “Não saia daí”.
Os passos pela casa cessam, um carro parte, a campainha toca. A menina desce e recebe o vizinho de olhos arregalados, que educadamente preferiu esperar do lado de fora da casa para salvá-la. Ele pergunta-lhe pelo ocorrido enquanto rumam para a cozinha. Lá chegando apenas o que se vê é o chão inundado pela urina do cachorro, que não se encontrava em lugar nenhum. A menina cai em prantos, temendo pelo pior. Nisso percebe o cachorro tremendo feito vara verde debaixo da mesa. A menina chora ainda mais alto por saber que ele está salvo. O vizinho cumpre seu papel “vou preparar-lhe uma água com açúcar”. Outros vizinhos chegam.
O celular da menina toca “Porque você me deixou falando sozinho tanto tempo no MSN?” O cachorro agora quer morder os vizinhos e a menina ainda emocionada por vê-lo bem não consegue se justificar ao celular. Desliga e liga para o seu pai, que estava tratando de aguentar mais um dia o trabalho que detesta, para ter seus bens roubados e a vida de sua filha posta em risco.
Vizinhos curiosos estão muito preocupados em saber detalhes do corrido, alguns sobem as escadas para conhecer melhor o interior da casa. A menina toma o restinho da água com açúcar que o vizinho do lado acabou bebendo sem querer. O pai e uma viatura da policia chegam sincronicamente. De noite chega a mãe, medrosa como é, terá anos de perturbação e insônia por causa do episódio. O cachorro deve ter envelhecido uns cinco anos por conta da coisa toda.

Horas depois, sentados em silêncio, esperando a perícia, a família se assusta com o telefone que toca. “Chamada a cobrar, para aceitá-la, continue na linha após a identificação”. É o filho que mora longe, que mais um vez será poupado das tristezas e preocupações da família, como na vez que chegou de viagem e seu pai mostrou um cálculo retirado numa colecistectomia por videolaparoscopia realizada um mês antes, e que guardava no armarinho do banheiro.
Fala com toda a família, todos estão bem, a mãe colocou aparelho nos dentes, o pai tá de carro novo, a menina vai viajar. Não querem preocupá-lo, ele está muito longe e nada pode fazer, pensam que não há necessidade de compartilhar o legitimo sentimento da família. Descobrirá o que aconteceu somente quando vir o cadeado novo no portão. Resignado, pensará que precisa aproveitar bem a companhia daquelas pessoas queridas, pois poderia ter sido diferente.
O último a falar desliga o telefone, logo a perícia chega, faz o que deve ser feito e vai embora. Então, todos sobem para seus quartos, apagam as luzes para uma noite em claro. Ainda chovia muito.

sábado, 10 de julho de 2010

Na contagem regressiva

E se você ligasse a televisão no noticiário, fosse ler seu e-mail, ou estivesse dirigindo do trabalho para casa e ficasse sabendo pelo rádio que descobriu-se que o mundo acabará em 24h. E que não se trata de nenhuma previsão de Nostradamus ou Walter Mercado, mas sim de alguma coisa perfeitamente crível. O que você faria?
Isso já deve ter passado pela cabeça de quase todo mundo. A ideia já foi explorada em outras crônicas, novelas, canções, e naturalmente, também tenho minha teoria: Acho que se o Armargeddon fosse confirmado, seja lá qual fosse o desfecho, as pessoas iriam reagir basicamente de duas formas e o mundo se bipolarizaria. De um lado haveria a maior orgia já vista no planeta (juntamente também, devido ao nervosismo e falta de concentração inerentes a ocasião, o maior índice de broxamentos já registrado) e do outro, razoavelmente menor, haveria gente orando, pedindo um final misericordioso, se arrependendo e tentando garantir absolvição pelos pecados terrenos, ou algo que o valha. Eu tentaria juntar a galera e organizar a “festa do apocalipse”. Haveria também aqueles se excederiam no “esquenta” para o fim dos tempos e “queimaria a largada”, acabando-se antes do resto da turma.
Seria possível também que por um acesso de ansiedade, além de serem pegas totalmente desprevenidas, as pessoas não soubessem muito bem como lidar com a situação e não fizessem nada de especial. Outros, por preguiça, se convenceriam de que aproveitaram bem tudo o que tinha para ser vivido, e se contentariam em tomar sua última cervejinha assistindo da varanda a indiferença dos cachorros e passarinhos, que teriam o privilégio de não entenderem nada do que estaria se passando.

Enfim, o mundo um dia acaba, seja para todo mundo de uma vez, ou para uma pessoa só, e a isso chamamos de morte. Mas saber com exatidão quando vai acontecer deve ser algo muito tenso.
Assisti dias atrás a um filme que retratava os últimos dias de um sujeito no corredor da morte. Quando isso acontece, eles tem direito a algumas “regalias”, entre elas pedir qualquer coisa para sua última refeição. Refleti bastante a respeito, caso estivesse nesta situação. Fiquei em dúvida se pediria arroz, feijão e carne moída, com bacon e azeitonas (sem caroço), feitas pelo meu pai, ou um pastel de feira, de carne com queijo, acompanhados de um grande copo de caldo de cana com limão. Parece uma reflexão besta, e realmente deve ser, mas me fez pensar sobre os pequenos prazeres do dia-a-dia, e a importância que ganham imaginando-se situações-limite, como esta. É um exercício mental bacana de se fazer, de fato chega-se a algumas conclusões.
Ainda pensei que se a escolha fosse a carne moída, ainda pediria uma cervejinha, de preferência uma Original ou Serramalte, só que nesta ocasião eu teria de escolher alguém para dividir o momento, pois assim como parte do prazer de fumar está em manusear o cigarro (que fique claro que eu não fumo, mas já estudei bastante sobre o assunto), acender o isqueiro, e ver-se baforando a fumaça, parte do prazer de tomar uma gelada (sim, eu bebo; sem mais detalhes) está nela ser de garrafa, de deitar o copo para que não faça espuma enquanto a despeja (caso não seja uma longneck e você beba no bico) fazer um brinde a uma coisa qualquer (e aí que entra a companhia), e sentir a sensação única dela descendo pela garganta no(s) primeiro(s) gole(s).
Agora imagine-se tomando sua última cerveja.

Entretanto, há uma situação oposta a essas sobre as quais conversamos até agora. A de você saber que alguém vai passar dessa pra melhor. É “muito mais fácil” (e aqui essas aspas vão muito bem), saber que alguém de quem você gosta vai morrer, nem que seja daqui a pouco, do que se isso acontecer de supetão. Pois assim você terá o direito de se redimir, de quitar as diferenças, de dizer o quanto gosta da pessoa, entre todas as outras coisas que te deixará com a consciência em paz quando ela se for. Diferente dessas tragédias que acontecem por aí. Um bêbado atravessa a estrada, pega a contra-mão e mata alguém que você conhece, e que você por algum motivo tolo brigou da última vez que viu, e por isso vai ficar um bom tempo com dor na consciência, se perguntando porque ligava para coisas tão pequenas, e não aproveitava melhor o tempo que tinham juntos.
Não digo que devemos fazer provas de amor toda vez que as pessoas que amamos saem pela porta de casa, imaginando que podem ser atropeladas na próxima esquina. Digo apenas que se nos importássemos menos com detalhes e mesquinharias, fossemos um pouco mais capazes de dizer coisas agradáveis e sermos gentis, estaríamos melhor prevenidos nesses casos de desastre. Utilizando-se desses artifícios, e acrescentando um pouco mais de coragem e ousadia, mesmo quando a situação não for tão favorável, ter sonhos maiores e se permitir tentar alcançá-los, quem sabe se um dia a coisa toda for mesmo acabar assim de repente, não poderemos nos dar o luxo de simplesmente sentar e olhar os cachorros e passarinhos.

sábado, 3 de julho de 2010

Novos Horizontes

Engraçado a quantidade de pessoas naturais de diferentes estados brasileiros que reclama para si a característica de não ter sotaque. Claro que isso não vale para cariocas, gaúchos ou a turma do nordeste em geral, mas bastante gente realmente acha que o povo ao qual pertence possui uma cadência “neutra” quando fala.
Semana passada conversei sobre isso em duas situações diferentes: a primeira, tomando chop de vinho junto a um casal de amigos brasilienses e a segunda almoçando no restaurante universitário, num domingo após a missa, com um colega capixaba, e nas duas oportunidades, as pessoas não tinham a mínima dúvida de que não possuíam sotaque algum e usaram a mesma comparação: “Sabe o William Bonner apresentando o Jornal Nacional? É assim que a gente fala”.
“Claro, claro” foi minha resposta, pensando intimamente, como bom paulistano que sou, que definitivamente quem não tem sotaque somos nós. E convicto de que, se bobeasse, o William Bonner tivesse sido criado aqui pela vizinhança.

À parte o sotaque, é interessante também como carregamos pré-conceitos sobre o povo de determinada região, que muitas vezes não confere com a realidade quando de fato conhecemos as pessoas daquela localidade. Nem todo carioca é malandro ou todo baiano é preguiçoso. Nem todo gaúcho tem tendências homossexuais assim como nem todo mineiro só vive de pão de queijo. Isso parece óbvio, mas é inegável que se somos apresentados a um novo colega de trabalho carioca, antes de conhece-lo bem, achamos que ele vai nos passar a perna, se ele for baiano, melhor não pedir favores senão vai demorar uma eternidade para serem feitos; quando você voltar do almoço vai ter uma rede estendida no meio do escritório e, se for gaúcho, ficará com um pé atrás se ele te convidar para tomar uma cervejinha depois do expediente.
Há menos de uma semana fui com alguns amigos num barzinho lá em Floripa e acabamos conhecendo umas moças que estavam na mesa ao lado. Comecei conversando com uma carioca, que afirmava que os paulistas são convencidos e superficiais. “Só olham a casca (“caixxxca”)”, dizia ela. Passamos uns bons minutos conversando, perguntei o que fazia da vida (resposta: “sucesso”), o que estava fazendo em Floripa e sobre o vida cultural do Rio. Perguntei sobre a boemia da Lapa, shows no Circo Voador, Fundição Progresso, sobre a Vila Isabel (gosto muito de Noel Rosa), entre outros. O papo fluía bem, até quando apresentei um amigo goiano, o que causou um grande abalo nos rumos da noite.
“Goiânia? Sério? Olha amigas, ele é de goiânia! Adoro sua terra, o povo de lá, só tem gente boa, mulher bonita...”. Meia duzia de palavras, uma música sertaneja bem dançada e a fatura já havia sido feita. Fiquei refletindo sobre aquele papinho todo de “olhar somente a casca”, resolvi pedir mais um chopinho e me prometi que da próxima vez jurarei que sou de Goiás.

Acho bonito o sentimento que cada um tem por sua terra. Alguns se excedem e acham que só o lugar onde nasceu é que presta. Isso por vezes gera grandes discussões. Todo radicalismo tende a ser um pé no saco, e como disse um conhecido meu certa vez, nunca vale a pena discutir com um chato radicalista: você acaba caindo no mesmo nível mas ele sempre ganha a discussão porque tem experiência.
Mas no geral, as pessoas falam com um orgulho ingênuo sobre suas raízes. Estudando com uma turma na qual há pessoas de vários cantos do país, estou ciente de que tenho muito a conhecer. Alguns lugares nem é preciso conviver com alguém que lhe diga que lá é bacana de se visitar. Costumo dizer que depois de ler Jorge Amado e escutar Dorival Caymmi tenho receio de ir a Bahia e não querer voltar nunca mais. Fernando de Noronha é Hors Concours e Bonito todo mundo que foi também sempre coloca no top 3.
Até hoje não conheci muitos dos clássicos pontos turísticos do país, mas tenho a sorte de ter bons amigos, que me fizeram conhecer lugares talvez tão legais quantos estes clássicos, tanto que estou idealizando uma futura empreitada literária, que será batizada de: “Rumos do Fumaça: Um guia turístico para quem gosta de vassourar”, (aos desavisados, Fumaça é meu apelido na faculdade, e traduzindo: “vassourar” = aproveitar a vida de forma louca e inconsequente), onde serão dadas dicas de como aproveitar bem sua visita à Festa do Pinhão em Lages, Balneário Gaivota no sul catarinense, micro-cidades do noroeste paranaense, a rota do xadrez mineiro, entre outros.
Enquanto isso não acontece, me permito emprestar uma frase de um grande viajante que, por ora, possui coisas mais interessantes a dizer a respeito de alguns assuntos sobre os quais resolvi discorrer por aqui.

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.”(Amyr Klink)

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.