terça-feira, 23 de novembro de 2010

Roleta Russa

Há algumas semanas estava de plantão na central de transplantes, onde estagio, quando lá pelas tantas recebemos uma notificação de um potencial doador oriundo de Chapecó (cidade do oeste catarinense). Um jovem de 21 anos, estava para iniciar os testes comprobatórios para morte encefálica (condição sine qua non para ser doador). A causa da morte: ferimento por arma de fogo, o motivo: Roleta Russa.
Incredulidade, indignação, pena. Uma mistura de sentimentos passava por todos nós ali da central. “Como é que alguém ainda faz uma coisa dessas hoje em dia?” Supusemos que o garoto deveria estar sob efeito de álcool, ou alguma droga, querendo justificar de alguma forma o que parecia algo completamente sem cabimento.

Estudando medicina nos deparamos quase diariamente com pessoas que voluntária ou involuntariamente, acabam abreviando suas vidas. Pessoas que ingerem pesticidas, veneno para rato, que tomam dois litros de cachaça por dia, que comem muito, e mal, não se exercitam, que fumam dois maços de cigarro por dia, ou um, ou meio. A diferença entre elas é apenas o tempo em que cada um desses mecanismos leva para dar cabo a vida do indivíduo.
Durante o curso acabei me envolvendo bastante com a área de pneumologia, em especial com o tema tabagismo. Faço parte de um grupo que está desenvolvendo um estudo sobre o assunto, e já participei de cursos de abordagem a pacientes tabagistas, entre outros. Embora haja grande conscientização por parte da população sobre os malefícios do tabagismo, sua cessação continua sendo um enorme desafio.
Conheço gente inteligentíssima, tenho amigos pós-graduados e até professor de pneumologia que fuma! E como é que se faz a abordagem de pessoas como essas, quando se trata de convencê-las a parar de fumar? O discurso que eu usava era a seguinte: “Você deve saber até melhor do que eu que cigarro faz mal, não vou ficar te azucrinando, mas se um dia você estiver querendo parar, pode me procurar que eu te ajudo”. Certo? ERRADO!
O grande problema é que muita gente não consegue visualizar o dano a longo prazo que o cigarro faz. Não é a figurinha de um pulmão podre no verso do maço que vai detê-los. Devemos fazê-los crer que (e aqui vai uma forçada da barra) que fumar é praticamente uma Roleta Russa. Parece bastante dramático querer comparar um maço de cigarros a um revólver, mas reparem bem:
não só de câncer de pulmão morre um tabagista (e a chance de um tabagista desenvolvê-lo é 1 em cada 10). Existe também o câncer de boca e de garganta. Além disso, existe a DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica) que segundo projeções, será a terceira maior causa de morte no mundo em dez anos. Menos de 15% dos fumantes desenvolverão DPOC, mas quase 90% dos que possuem essa doença, são tabagistas. Fumar é um dos maiores fatores de risco para o infarto, entre inúmeras morbidades que são agravadas pelo seu uso.
Some todas essas probabilidades e verá que a chance de um fumante morrer por causa de seu vício é maior do que o 1/6 do projétil de um revolver encontrar sua cabeça se resolver “brincar” de roleta russa, com o agravante que você não morrerá instantaneamente, mas passará anos com uma qualidade de vida sofrível, sendo torturado diariamente física e mentalmente por causa de sua condição.

Pare e reflita que hoje nos parece um absurdo que já tenha sido permitido fumar dentro de aviões. “Nossa, as pessoas fumavam dentro e aviões!”, diríamos nós. Daqui um tempo, graças a essa nova lei que proíbe fumar em lugares fechados, em vigor em cidades como Florianópolis e São Paulo, acredito que estaremos dizendo “Nossa, as pessoas fumavam dentro das baladas!”. Penso que devemos ser otimistas e audaciosos, trabalhando para que um dia se seja possível que as futuras gerações numa conversa qualquer possam dizer: “Nossa, as pessoas fumavam!”.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Tio Giba

Espaaaalmaa Zéééttiii!!!
O ano devia ser 93 ou 94. O palco do jogo, um estreito corredor de um sobradinho no subúrbio paulistano, o Zetti na verdade era eu, com algo entre 6 e 7 anos, me estropiando no chão de concreto a cada ponte que dava para alcançar as cobranças de faltas batidas por meu Tio Gilberto, que interpretava Evair, Zinho, Rivaldo, Roberto Carlos e ao mesmo tempo atacava de Luciano do Valle na narração.
O tio Giba é o ser humano mais apaixonado por futebol que já conheci. Mais por obra dele e de minha tia Déa do que de meu pai que hoje torço pelo verdão. Há fotos de quando eu era bebê, no carrinho, vestindo camisas verde e brancas maiores que meu corpo inteiro, “coisa do seu tio Giba”.
A casa do Tio Giba é toda decorada com objetos do palmeiras, na cozinha canecas com o símbolo desenhado, adesivos na janela, na sala, pôsteres enquadrados com as formações campeãs dos títulos brasileiros da década de 90, campeonato paulista, libertadores. Há ainda uma ou outra caravelinha espalhada pela casa, aludindo ao fato de que, como cedo me ensinara tio Giba, Palmeiras e Vasco da Gama são torcidas irmãs.
Tio Giba respirava futebol. Quando presente nas festinhas da família, mobilizava grande parte dos parentes (que entendiam pouco ou quase nada de futebol) em análises complicadíssimas sobre formações táticas, características individuais de cada jogador, rememorava com vivos detalhes atuações antológicas de determinado craque, escalava times vencedores. Longe de ser chato, Tio Giba no último natal escalou o time do palmeiras completo que perdeu para o Inter de Limeira a final do campeonato Paulista de 1984. A família toda se entristeceu com a derrota.
Conta meu pai que houve um tempo em que tio Giba e Tia Déa percorriam o estado todo atrás dos jogos do verdão, tradição esta que hoje é mantida por seus filhos e netos. Segundo a tia Dea, o Juninho foi até Uberaba dia desses só pra assistir a um jogo.
Tio Giba além de torcedor fanático era também tapeceiro. Por ocasião da construção de um novo quarto na casa onde eu morava, lá nesses idos de início da década de 90, entre uma ou outra grande defesa de Zetti, lembro-me dele dizendo “Pedrinho, vou fazer uma poltrona de estofado verde pra você por no seu quarto novo”. Achei aquilo o máximo, na minha cabeça de menino, uma poltrona devia ser algo imponente. E ainda verde! Todos saberiam que eu era um torcedor do palmeiras muito respeitável.
Por muitos domingos eu esperei no portão de casa o Chevette cor de creme do Tio Giba e da Tia Déa trazendo a notícia de que a poltrona havia ficado pronta, coisa que nunca aconteceu, e eu fui esquecendo aos poucos. Aos poucos também foram rareando as visitas do Tio Giba à nossa casa. Tia Déa, que jamais deixou de nos visitar, comentava que Tio Giba tornara-se uma pessoa cada vez mais reclusa, mal saia de casa. Assim mesmo, nas festas de final de ano, ocasião quase exclusiva em que o via, ele me parecia sempre o mesmo, falando de futebol, sua risada divertida, fala mansa, barba por fazer.

Mudei-me para Florianópolis há mais de três anos e desde então acho que vi o Tio Giba duas vezes (uma delas no natal que ele contou da final do campeonato de 1984). Falo com meus pais quase todos os dias pelo telefone, e há cerca de um mês, lembro-me de minha mãe comentando que a Tia Déa disse que o Tio Giba andava com hábitos estranhos, que outro dia havia acordado no meio da madrugada e começou a trocar as gavetas do guarda-roupa no escuro.
Poucos dias depois ligo lá pra casa e dizem que o Tio Giba havia caído sei lá onde, batido a cabeça e levado ao hospital. Lá acabaram por detectar um tumor no SNC. Daí pra frente as informações começaram a ficar desencontradas, até porque é difícil mesmo as pessoas entenderem o que se passa, e muitas vezes se negam a enxergar a gravidade da situação. A única coisa que eu sabia é que os médicos diziam ser inoperável.
Por ocasião do último feriado, voltei para São Paulo, e ainda planejando com meu pai a programação para aqueles dias, ele perguntou “e o que você acha de ver o Tio Giba?”. Na terça-feira pela manhã, eu meu pai vestimos camisas do palmeiras (tinha certeza que o tio ia se alegrar) e fomos visitá-lo. Chegando lá, vi o tio deitado na cama, com uma sonda no nariz, emagrecido, muito emagrecido, olhos abertos fixos no teto, trajando uma camisa do Palmeiras e uma calça do Vasco.
Não tive coragem de chegar e perguntar “Tudo bem?”. A resposta seria “Tudo bem”, porque invariavelmente as pessoas respondem isso em qualquer situação. “E aí tio, como é que tá o Palmeiras?”, foi como decidi começar. Ele levantou o polegar num sinal de “jóia”, e bem lentamente foi virando a mão para baixo, abriu um sorriso e disse “vai mal, Pedrinho”. Falei mais algumas coisas, e então meu pai começou a falar, oportunidade que tive para perguntar para a Tia Dea qual era de fato a situação.
Ela me levou para outro quarto, me deu alguns exames para ver, e enquanto eu lia o laudo “Astrocitoma, comprometendo os lobos temporal, frontal, occipital, etc, etc” foi me dizendo que os médicos disseram que não iam operar, pois a sobrevida seria de menos de um ano, e em estado vegetativo, e só com a quimioterapia a sobrevida seria de cinco meses. Eu conseguia sentir em mim o nó na garganta dela, pensei em abraçá-la, mas foi quando ouvi: “Pedrinho, Pedrinho”. Era meu tio me chamando.
Voltei para o outro quarto. Quando me viu, ele estendeu a mão esquerda no ar, segurei-a e ele levou até junto a sua face, beijou-a e com os olhos marejados disse “Pedrinho, Pedrinho, gosto tanto desse menino!”. Eu não sabia muito bem o que fazer, apenas disse “Tio, também gosto muito do senhor” e retribuí-lhe o beijo na mão.
Depois de curto silêncio meu pai falou que tínhamos de ir embora, pois em breve eu pegaria vôo de volta para Florianópolis. Disse ainda “Giba, fica tranqüilo que já já você vai sarar”, beijou-lhe a testa e fez sinal para irmos embora. Descíamos os três as escadas quando ainda ouvimos o Tio Giba dizer “Manda um beijo para a Isadora” (minha irmã).
Foi a última vez que vi meu tio. Ontem a noite meus pais telefonaram dizendo que ele havia falecido. Meu pai, sujeito de rara sensibilidade fizera questão (apesar de não ter transparecido) que eu visse meu tio aquele dia, pois imaginava que pudesse de fato ser a última. A Sociedade Esportiva Palmeiras perdeu um grande torcedor, o maior que conheci, e eu, um tio querido, do qual só tenho boas lembranças. Quando quiser me lembrar dele, vai ser com carinho e saudade que me virão em mente o Chevette cor de creme chegando no domingo, ou sua voz inconfundível gritando “Zéééttiii”.

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.