domingo, 10 de abril de 2011

Relação médico-pc

Não eram nem oito da manhã quando a professora de psiquiatria pediu a atenção dos alunos. Não porque conversavam entre si, mas porque seus olhos miravam ora a projeção no quadro, ora a tela do note/netbook nos quais digitavam, até que a busca por um olhar qualquer que viesse de encontro ao seu ficou angustiante demais para dar seqüência ao que dizia. Todos (ou quase todos) estavam prestando atenção à aula, mas não à pessoa que a conduzia. A professora, por sua vez, não estava brava ou indignada conosco, estava com pena.
Deixou por alguns minutos o assunto sobre o qual discorria de lado, e falou de maneira bastante franca sobre sua angústia. Falou ainda sobre as implicações desta forma de agir (ouvir o que lhe fala uma pessoa sem emprestar-lhe o olhar) em nossa futura profissão, dos prós e contras desses novos dispositivos eletrônicos em nossa área de atuação e culminou falando, de forma inevitável, sobre a relação médico-paciente.
Não foi preciso que inventassem o computador para que muitos dos médicos jogassem fora tudo aquilo que aprenderam sobre tal relação. Basta papel e caneta. É o paciente falando (quando não interrompido pelo médico) e o doutor ali, escrevendo, cabeça baixa, prontuário, solicitação de exames, receituário.
Ser um bom médico não é somente saber acertar diagnósticos e prescrever corretamente os medicamentos. Escrever sobre isso me parece “chover no molhado”. A quantidade de vezes que presenciei condutas lamentáveis em consultas médicas justificariam facilmente uma abordagem sobre o assunto, no entanto, acho bastante pertinente falar um pouco sobre outra relação que se torna cada dia mais preocupante, a relação médico-pc.
“Felizes aqueles com mais de vinte anos, pois viveram um pouco off-line”. Isso li na revista de uma companhia aérea, numa das vezes que ia ou vinha de São Paulo. E de fato, cada vez mais cedo somos apresentados aos equipamentos eletrônicos, que nos possibilitam entrar em contato com qualquer pessoa que habite este planeta, seja lá onde ela estiver, menos ao seu lado. Criamos perfil nas redes sociais que nos permite “ser” aquilo que julgamos mais atrativo para aqueles com quem desejamos nos “socializar”.
Facebook, Twitter, blogs, MSN...A pessoa cria para si e sobre si a realidade que quiser. Ela tirou 2 mil fotos na vida, das quais 1990 ficaram medonhas. Ela vai e coloca no álbum as dez que ficaram razoáveis, mas nas quais está irreconhecível (com um óculos de sol gigantesco, de perfil, fazendo bico), uma frase de impacto na página inicial (que não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que você já ouviu ela falando “em vida”) e de meia em meia hora vai informando o que vai fazer ou está fazendo (“vou tomar banho”, “estudando para a prova”, “corrida na beira-mar” - essa última geralmente é mentira) e ainda assim deixa meia dúzia de janelas do MSN abertas pois quando terminadas essas atividades voltará a sua vida virtual.

Bricadeiras a parte, é iminente a fragilidade das relações humanas nos tempos atuais, e não há como não as atrelar ao cada vez mais fácil acesso à internet. Desde a mocinha tímida detrás do seu notebook que durante a aula ouve a professora falando sobre tricíclicos e, (como ela não se lembra o que são tricíclicos) em vez de vencer a timidez e perguntar à professora do que se trata, recorre, via wireless, à wikipédia, até o rapaz apaixonado que só é capaz de se declarar por MSN, a rede possui comemorativos que fazem para muitos, essa “second life” muito mais atraente do que aquela que Deus pôde nos oferecer.
Mas quem adoecerá não será a foto de óculos gigante, de perfil e fazendo bico. O corpo terá de deixar a Matrix e procurar médico no mundo real. O Dr. Google pode até lhe dar algumas pistas do que se trata aquela dor, aquela mancha ou caroço que apareceu de repente, mas sem o médico, o Dr. Google não fará com que ela desapareça sozinha. E é aí que entramos nós, seres igualmente seduzidos pelos tentáculos virtuais, mas que para boa prática de nosso ofício, temos que oferecer nossa empatia, atenção e compreensão àqueles que nos procuram.
E tudo isso começa pelo olhar. Pode ser o único momento da vida da pessoa que está na sua frente, em que ela está encarando alguém olho no olho, mas você precisa estar preparado para isso. Você escolheu isso. E não se iluda, sua capacidade de relacionar-se e a qualidade de suas abordagens é inversamente proporcional ao tempo que você dedica ao seu pc. Talvez nossa geração não enxergue isso com tanta clareza, justamente pelo fato de ainda ter vivido um pouco num tempo em que a web apenas nos instigava a curiosidade, e não a víamos como ferramenta fundamental à sobrevivência. A geração que está vindo ai não só a vê como uma ferramenta, um meio para chegar a determinados fins, como a vê como um fim em si mesma, ao passo que a vida fora da internet num futuro não tão distante será vista como algo exótico.

Prego que a relação médico-pc tem de ser vivida em doses homeopáticas. Prego que a relação de qualquer pessoa com a internet seja desta maneira. Talvez eu seja apenas um saudosista encrencando com as modernidades e os rumos inevitáveis e inalteráveis do mundo e da nossa sociedade, mas não consigo ver uma forma em que o bom exercício da medicina dispense os fundamentos das relações interpessoais predominantes e valorizados outrora. Pense nisso.

2 comentários:

Manoela disse...

Mto bem escrito, Pedro!
Beijos!!!

Anônimo disse...

Mas e quando vai fazer seu facebook? rsrsrsrsrs, você cada dia mais me enche de orgulho.Meu nerdzinho lindo, beijo da sua irmã predileta.

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.