Acordou ressaqueado e era véspera de
Natal. Não se lembrava de nada; observando o ambiente ao redor, movendo o
mínimo de músculos possível, foi lembrando aos poucos dos fatos que não
dependiam da noite anterior: 61 anos, aposentado, divorciado (duas vezes), e
até então, aliás até onde sabia, ainda não havia herdeiros a quem delegasse o
legado de nossa miséria. Do rádio-relógio que deveria estar tocando sozinho há boas horas saia Feliz Navidad de um coral infantil. Foi à geladeira e pegou uma
Long Neck para acabar um pouco com a dor de cabeça.
Há tempos em que sentia-se na
obrigação de não dar satisfações a ninguém, nem a ele mesmo, de forma que não
se importou tanto com o fato de não se recordar dos eventos recentes. Da
varanda do seu esconderijo do milésimo andar de um edifício do Morumbi, criou o
hábito de observar, a la James Stewart, a vida secreta da favela fronteiriça
com o muro de seu condomínio.
Sua vizinha-personagem favorita
estava recolhendo roupas do varal. Mãe de três filhos, já a vira estendendo
aquelas mesmas roupas inúmeras vezes, algumas delas tragando um baseado,
enquanto o marido trabalhava e as crianças estavam na escola. Ele mesmo, em
solidariedade, e para sentir-se de alguma forma conectado com aquela mulher, também
acendia um.
Nessas horas lembrava da cena
repetida toda manhã: A mãe levando os filhos até o portão, onde passava outra
mãe com uma dúzia de crianças, a conduzi-las a escola. Dava uma última ajeitada
na roupa de um, uma penteada nos cabelos de outro, as vezes alguma presumível
bronca, beijava os três, que seguiam com as mochilinhas pesadas: cadernos e
livros que tinham a mesma função social de um tijolo. Ele olhava aquilo e
pensava não só no que via através da sacada, mas dentro dela também.
Deixou-se estar ali e já na
quarta long neck, quando a ressaca se revertia em porre outra vez, teve uma
ideia, que lhe soou despretensiosa e brilhante. Na cidade que nunca para, os
shoppings ficam abertos até as 18h na véspera de Natal. Dirigiu(-se) ao mais
próximo e estourou o cartão de crédito em brinquedos e uma fantasia de papai
Noel. Seria o bom velhinho dos filhos da mulher dos varais.
Perto da meia-noite trajou-se de
vermelho e barba branca postiça. Olhou no espelho e se sentiu ridículo, na
verdade envergonhado. Nada que uma dose dupla de Jack Daniels não resolvesse. Ligou
o rádio “And so this is Christmas, and what have you done?”...mais uma dose…”quem
seja feliz quem souber o que é o bem”, meia dose, outra olhada no espelho, uma
lágrima...”marcas do que se foi, sonhos que vamos ter, como um novo dia nasce,
novo em cada amanhecer”...mais duas doses, uma de whisky e outra de coragem.
Botou o saco nas costas, e saiu pela porta.
Dizem que foi o natal mais
incrível não só das crianças, mas também dos adultos de todo o bairro vizinho. Dizem também que houve um
papai Noel encontrado desacordado em cima de uns sacos de lixo numa rua
próxima. Dizem que um papai Noel fez o melhor discurso sobre o amor e sobre o
espírito natalino numa praça daquela região. Dizem que papai Noel não existe.
Dizem
também que foi a primeira vez em que o Papai Noel foi visto descendo das
alturas não de trenó, mas de um elevador panorâmico.
Um comentário:
LINDO1
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