terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Outro conto de Natal


                Acordou ressaqueado e era véspera de Natal. Não se lembrava de nada; observando o ambiente ao redor, movendo o mínimo de músculos possível, foi lembrando aos poucos dos fatos que não dependiam da noite anterior: 61 anos, aposentado, divorciado (duas vezes), e até então, aliás até onde sabia, ainda não havia herdeiros a quem delegasse o legado de nossa miséria. Do rádio-relógio que deveria estar tocando sozinho há boas horas saia Feliz Navidad de um coral infantil. Foi à geladeira e pegou uma Long Neck para acabar um pouco com a dor de cabeça.

                Há tempos em que sentia-se na obrigação de não dar satisfações a ninguém, nem a ele mesmo, de forma que não se importou tanto com o fato de não se recordar dos eventos recentes. Da varanda do seu esconderijo do milésimo andar de um edifício do Morumbi, criou o hábito de observar, a la James Stewart, a vida secreta da favela fronteiriça com o muro de seu condomínio.

                Sua vizinha-personagem favorita estava recolhendo roupas do varal. Mãe de três filhos, já a vira estendendo aquelas mesmas roupas inúmeras vezes, algumas delas tragando um baseado, enquanto o marido trabalhava e as crianças estavam na escola. Ele mesmo, em solidariedade, e para sentir-se de alguma forma conectado com aquela mulher, também acendia um.

                Nessas horas lembrava da cena repetida toda manhã: A mãe levando os filhos até o portão, onde passava outra mãe com uma dúzia de crianças, a conduzi-las a escola. Dava uma última ajeitada na roupa de um, uma penteada nos cabelos de outro, as vezes alguma presumível bronca, beijava os três, que seguiam com as mochilinhas pesadas: cadernos e livros que tinham a mesma função social de um tijolo. Ele olhava aquilo e pensava não só no que via através da sacada, mas dentro dela também.

                Deixou-se estar ali e já na quarta long neck, quando a ressaca se revertia em porre outra vez, teve uma ideia, que lhe soou despretensiosa e brilhante. Na cidade que nunca para, os shoppings ficam abertos até as 18h na véspera de Natal. Dirigiu(-se) ao mais próximo e estourou o cartão de crédito em brinquedos e uma fantasia de papai Noel. Seria o bom velhinho dos filhos da mulher dos varais.

               
                Perto da meia-noite trajou-se de vermelho e barba branca postiça. Olhou no espelho e se sentiu ridículo, na verdade envergonhado. Nada que uma dose dupla de Jack Daniels não resolvesse. Ligou o rádio “And so this is Christmas, and what have you done?”...mais uma dose…”quem seja feliz quem souber o que é o bem”, meia dose, outra olhada no espelho, uma lágrima...”marcas do que se foi, sonhos que vamos ter, como um novo dia nasce, novo em cada amanhecer”...mais duas doses, uma de whisky e outra de coragem. Botou o saco nas costas, e saiu pela porta.

                Dizem que foi o natal mais incrível não só das crianças, mas também dos adultos de todo o  bairro vizinho. Dizem também que houve um papai Noel encontrado desacordado em cima de uns sacos de lixo numa rua próxima. Dizem que um papai Noel fez o melhor discurso sobre o amor e sobre o espírito natalino numa praça daquela região. Dizem que papai Noel não existe.
                Dizem também que foi a primeira vez em que o Papai Noel foi visto descendo das alturas não de trenó, mas de um elevador panorâmico.

Um comentário:

Anônimo disse...

LINDO1

Seguidores

Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.