segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

De passagem

Tarde dessas voltava para casa não me lembro de onde, quando, numa ruela bem próxima da minha casa ouvi o ronco furioso de um motor de carro, uns cinquenta metros atrás de mim. “Mais um querendo se aparecer.” pensei, afinal de contas, desde que mundo é mundo, ou desde que inventaram os automóveis e os recém graduados motoristas (ou até aspirantes a) são capazes de dar uma volta pelo bairro, sentem uma vontade irrefreável de fazer barulho com o Corsinha 1.0 que pegaram escondido do pai ou com o Opalão 77 emprestado do avô. Injusto, no entanto, seria excluir-me desta trupe, portanto não vejo razão para condená-los.
Acontece que eu era a única pessoa que passava por aquela rua na ocasião, contudo a barulheira não cessava. “Será que é alguém que eu conheço, e tá fazendo uma brincadeira?” . Mesmo assim não me virei para trás. Pouco a pouco o carro foi se aproximando, e quando passou por mim, não pude esconder a cara de espanto. Num desses carros família, tipo Palio Weekend, estava um casal de velhinhos, um vovô ao volante e sua senhorinha no banco do passageiro, olhando fixamente para frente e continuando a fazer um barulho danado.
Definitivamente eles não preenchiam o perfil de pessoas que saem por ai querendo impressionar quem quer que seja pisando no acelerador de um carro em ponto morto, mas se encaixavam perfeitamente naquele que agrupa os pilotos de primeira viagem. Seguiram até o final da rua, que faz uma curva e desemboca numa outra mais movimentada, cujo único sentido possível é uma subida. Ali, o carro morreu.
Por sorte não era a hora do rush. Passei por eles, atravessei a rua e fiquei alguns instantes assistindo. Várias e várias vezes a mesma sequência se repetiu: o velhinho dava a partida no carro, engatava a primeira marcha, pisava no acelerador, o carro não se movia e voltava a morrer. Nitidamente não conseguia sincronizar o movimento dos pedais, e a senhorinha, por sua vez, nada dizia, corroborando a suposição que eu tivera minutos antes, de que eles deveriam ser iniciantes.
Senti uma vontade grande de ajudá-los, passei breves instantes avaliando a situação e cheguei a decisão de que não deveria socorrê-los. Retomei o caminho de casa convicto de que tomara a decisão certa, mesmo sob o olhar reprovador de uma idosa mulher que por ali passava e deve ter confirmado sua opinião de que a juventude hoje em dia é pouco prestativa, mal-educada e inevitavelmente perdida.
Durante meu tempo de reflexão, imaginei algumas possibilidades para aquela cena atípica: Um homem de idade que sempre tivera o sonho de aprender a dirigir, mas nunca teve coragem, ou dinheiro, agora depois de velho estava conseguindo realizá-lo. Ou nunca tivera vontade para tal, mas a vida toda sua esposa pediu-lhe que a levasse passear de carro, e antes do fim da vida ele resolveu aprender para satisfazê-la e subvertendo a lógica, pegou o carro escondido do filho. Ou ainda alguém que sofreu algum acidente e não pôde dirigir durante muito tempo, e agora estava reaprendendo. Sei lá, podia ser qualquer coisa, mas sem dúvida, aquilo era um (re)começo.
Eu poderia me oferecer a ajudá-los, guiar o carro de volta à garagem, deixando-os fora de perigo e tudo mais. Mas imaginem que coisa frustrante. Pensariam os dois “onde estávamos com a cabeça, fazer uma coisa dessas depois de velhos”, seriam repreendidos por seus filhos, se sentiriam incapazes e inconsequentes. Preferi dar-lhes a chance de superar o desafio, com a consciência de que as chances de fracasso não eram pequenas, mas que valia o risco.
Poucas são as pessoas que se propõem a novos desafios depois de certa idade. A maioria julga-se velha demais para aprender, “novidade” deixa de fazer parte de seu vocabulário. Ajudar aqueles velhinhos equivaleria, penso eu, a dar-lhes motivos para pensar desta maneira. O clichê do momento é que devemos aprender a envelhecer. Temos que desde cedo cuidar da saúde, comer bem, fazer exercícios, exercitar a mente, que assim, chegaremos ao centenário. Mas de que valerá chegar lá se não formos capazes de aproveitar, de nos sentirmos capazes para tal?
Desde há algumas semanas, minha inspiração e motivação para isso ganharam um nome: Oscar Niemeyer. Assisti a um documentário sobre imortalidade, que inevitavelmente invocava nosso maior arquiteto. Em meio a um monte de baboseiras, o documentário mostrava uma entrevista com Niemeyer, recém saído do hospital, onde ficou internado para um cirurgia de pequeno porte (se é que aos 102 anos alguma cirurgia pode ser assim considerada), e onde, durante sua internação, se propôs a compôr um samba, em parceria com o enfermeiro que dele cuidava. O documentário mostrou o enfermeiro entoando a canção, que era de fato bonita. Mesmo que fosse pavorosa, pouco importaria.
Niemeyer possui mais de dez projetos em andamento, e numa situação onde a maioria, independente da idade, tem ideias negativistas, ou no mínimo um leve mau-humor, ele se prestou a compôr uma música! Invejável. Literalmente, uma lição de vida.
Ele foi ainda indagado se, se tivesse a oportunidade de tomar o elixir da vida eterna, o faria. Sua resposta? “Se todos tivessem a mesma chance, sim.”. Um homem de 102 anos, com todas as perdas e limitações que o tempo lhe trouxe, numa época da vida com a qual poucos desejam chegar, por imaginar as condições físicas e mentais nas quais provavelmente se encontrariam, dá uma resposta dessas. No mínimo, digna de uma boa tarde de conversa, regada a cervejinha e aperitivos. Alias quem concordar, que me convide.
No fim das contas, cheguei em casa naquele dia pensando em tudo isso. De férias, sem nada de importante para fazer, resolvi deitar no sofá para aquele delicioso cochilo de meio de tarde, embalado pela televisão ligada em volume baixo. Não sei precisar depois de quanto tempo, mas fui acordado de sobressalto, por uma barulheira infernal vinda da rua: um ronco de motor. Com uma sensação boa, preferi não checar de quem se tratava.

6 comentários:

Unknown disse...

Eu, como sempre, me apaixonando pelas histórias de velhinhos! :)

Bruna disse...

Muito, muito, muito bom!!!

Unknown disse...

grande pedrao!
sempre com seu jeito bacana de olhar o mundo!
abraço

Unknown disse...

Pow, Pedrão, nesse dia eu vi no Datena que um casal de velhinhos tava levando o gatinho da netinha engasgado com uma espinha de peixe pro veterinário e acabaram atropelando um cachorro, no final todos estavam sendo transportados pelo aguia em estado grave...
bem que vc podia ter ajudado, né!?

Unknown disse...

"pegou o carro escondido do filho" hahahaah, adoro ler seu blog, dá uma paz
saudades,beijo.

Arthur Pompilio Astrogildo da Silva disse...

Muito boa, mano! Se vc não entender, não tem problema, mesmo q paresca ridiculoso, ai vai: O panorama da cena que vc deixa no texto é fantastico... eu li como se estivesse do seu lado e compartilhando seus pensamentos.
Agora ridiculosamente convem lembrar da metafora da borboleta, aquela que ela tem q sair do casulo sozinha... legal é pensar que eles tavam treinando pra tirar racha, no racha da 3a idade. Mas a ideia subversiva de pegar escondido o carro dos filhos... doi demais!

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.