segunda-feira, 15 de abril de 2013

Ipês e cachorros mortos


Naquele sábado o menino recebeu visita dos primos da cidade grande. Morava num sítio com açude, campinho, pomar, cavalos, até cancha de bocha. Só faltavam amigos, pois a propriedade era meio isolada, de forma que a visita dos primos era um grande acontecimento para ambas as partes, haja vista a felicidade proporcionada às crianças urbanas essas pequenas incursões interioranas.
Fizeram daquele dia um exemplo de infância, (já nem eram tão crianças assim) daquelas que a única preocupação é divertir-se alucinadamente, de maneira inocente, saudável e (in)consciente, o que envolve também seus perigos e traquinagens. Estilingaram uns passarinhos, quase se afogaram no açude, comeram frutas do pé, flertaram a filha do caseiro, jogaram bola até o Sol se pôr, contaram as primeiras estrelas, falaram bobagens e segredos, até que o tio veio buscar os primos.

O menino sentia um cansaço absurdo, mas uma felicidade ainda maior, daquelas que quando a gente ainda é criança, fecha os olhos e fica fazendo força, se concentrando, pra ver se quando abre, voltou no tempo e caiu no meio daquele dia em que a alegria parecia infinita. Jantou como se tivesse um gêmeo siamês obeso, tomou um banho no qual quase (ou efetivamente) cochilou em pé, e quando se dirigia para o quarto, ouviu a voz de seu pai, que lhe chamava a acompanhá-lo até um dos sítios da redondeza, pois o vizinho precisava de uma ajuda de urgência com alguma coisa que ele não entendeu bem.
Ele estava exausto, mas muito contente; resolveu ir ao auxilio do pai (na verdade não teria escolha, mas foi de bom grado). O pai optou por irem de motocicleta, de forma que o menino, distraído, ainda pensando nas atividades do dia, colocou o capacete e começou a subir na moto, pelo lado direito. Ao iniciar o movimento, sentiu um golpe forte na cabeça.
“Não te ensinei que não é por aí que sobe? Você é burro?” O pai provavelmente não tivera, ou não estava tendo dias como o do filho, que com a pancada, e as palavras duras, encheu os olhos de lágrima. “Desculpa, pai. Vou tentar lembrar de fazer certo da próxima vez. Mas...esse tapa, foi só por causa disso mesmo? Ou tem alguma outra coisa?”.
O pai olhou-o por alguns segundos através do capacete, com o semblante ainda cerrado. Subiram na moto, e antes de dar a partida, murmurou um “me desculpa”. Ligou o motor, e partiram para o vizinho.

                                                               
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Havia um caminho em que, numa dada curva, via-se à sua margem direita um ipê amarelo, no auge de sua capacidade florescente. Parecia figura de livro, ou melhor, de quadro, como se num arroubo de admiração as avessas, a vida quisesse imitar a arte, e não o contrário. E por isso mesmo, enchia os olhos e coração de quem passava olhando para ele de uma sensação boa, melhorando seu dia.
Na margem oposta do caminho, havia um cachorro morto, provavelmente atropelado, e várias vezes. Uma figura horrível, triste, nem os urubus o queriam mais. Todo disforme, emanava uma energia muito negativa. E por isso mesmo, sugava qualquer sensação boa de quem por ali passava, mirando-o. E claro, piorava seu dia.
Por esse mesmo caminho passaram diversas pessoas. Umas viram só o ipê, outras só o cachorro. Houve algumas ainda que enxergaram o cenário todo, e mesmo entre estas, existiam aquelas que possuíam a habilidade de escolher do que se lembrariam, e outras não.

2 comentários:

Renan disse...

Show de bola Fumassa,

Lhe indago sobre algo, você acredita que estariam pessoas sempre condicionadas a enxergarem um ou outro ??? Ou simplesmente você acredita que o que enxergar (ou algumas vezes não enxergar nenhum e eu acredito que isso é possível) muitas vezes é condicionado pelo humor diário ?

Pedro disse...

Renan, eu acredito nas “profecias autorrealizadoras”, ou seja, a pessoa tende sempre a ver o que ela quer ver. Assim, se a pessoa acha, por exemplo, que o mundo é uma merda, a atenção dela vai automaticamente focar nas experiências e figuras que corroborem a sua opinião. Portanto, concordo que as pessoas estejam de alguma forma condicionadas. Penso que em alguma medida (menor) o humor diário afeta isso também, mas o assunto é pra uma boa conversa de bar, haha. Abraço

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.