segunda-feira, 12 de maio de 2014

Sobre o valor de pessoas e palavras

Dona Terezinha sentiu fortes dores abdominais seguidas de vômitos, foi levada ao hospital, onde lhe apertaram a barriga, tiraram sangue, raio-x, depois disseram-lhe que tinha de operar. Quando menos esperava tinha uma máscara no rosto e alguém dizendo que ia ser “só uma espetadinha” e então dormiria tranquila.
Acordou num quarto do hospital com o marido de um lado e três pacientes nas outras camas espalhadas pelo ambiente. Continuava sentindo dores, que um doutor veio lhe dizer pela manhã que logo passaria. Não só não passou como somou-se a uma febre, mais agulhas, mais dor, um aparelhinho que escorre gel pela barriga e lá estava ela com a máscara no rosto e alguém lhe dizendo que ia dormir.

Desta vez quando acordou ainda estava com uma máscara no rosto, mas não tinha dor. Tudo ficou meio nebuloso, viu o marido de jaleco branco, grama no teto e vozes lhe cochichando. Perdeu completamente a noção do tempo.
A próxima lembrança é uma conversa com outro senhor de jaleco branco, lhe dizendo “A senhora tem 2 anos de vida”. Depois disso, casa.

De concreto, Dona Terezinha tinha agora uma concha de retalhos na barriga e a certeza da hora da partida. Além disso uma pilha de remédios que em pouco tempo decorou como tinha de tomar, fraqueza, falta de ar, um marido calado e tabagista pesado.
Os dias se arrastaram e Dona Terezinha desenvolveu uma mistura de medo, vergonha e incapacidade de dividir com qualquer pessoa a ideia de sua morte marcada. O marido, se se lembrava ou sabia, nada dizia; os demais, ela preferia poupar.
Sobre o veredicto não havia dúvidas. Dona Terezinha sabia bem que era “Deus no céu, e os doutores na Terra”, não haveriam de errar. E como Deus sabe o que faz, não poderia ela entregar-se. Viver dignamente o resto dos dias era o que lhe restava.
Tomava os remédios corretamente, dava conta dos afazeres domésticos, assistia televisão e sentia dores. Ademais, crescia-lhe apenas a curiosidade de como seria o fatídico dia. Sentiria uma dor terrível? Onde? No peito provavelmente. Ou morreria dormindo? Viria uma senhora de capuz negro e foice na mão? Um menino de cabelos cacheados e auréola? Ninguém? Ficaria tudo preto? Ou branco?

Dona Terezinha arrastou os 2 anos com o chinelo e uma barriga que crescia e doía lenta e progressivamente. Ficou mais pesada e calada. Sua segunda maior dúvida era qual roupa vestir para a morte. Escolheu um vestido velho, mas confortável. “Quanto menos sofrer, melhor”. Chegado o dia, ficou bastante ansiosa, o coração acelerou, passou o dia com dores de cabeça, e para completar, estava gripada, com o nariz a lhe escorrer o tempo todo. O marido, se sabia de algo, limitou-se a fumar meio maço de cigarros a mais.
Por convenção própria, imaginou que seria meia-noite. Pôs o vestido, sentou-se na poltrona da sala. Apenas para disfarçar, ligou a televisão em volume baixo. Repousou as mãos sobre o peito, sentindo as batidas do coração, e esperou.

Uma semana depois fui chamado a fazer uma visita domiciliar à Dona Terezinha, que se dizia extremamente frustrada e aborrecida com a morte. Além de muito brava, não tinha fôlego para ir da sala à cozinha. Uma enorme barriga toda remendada, pernas inchadas, olhos amarelos, e o marido pigarreando.
Estávamos eu, a enfermeira e uma técnica de enfermagem. Quando saímos da casa, os olhares e palavras que não trocamos somaram-se as percepções quanto a vida, a morte, a medicina, o valor das pessoas, e das coisas que dizemos.
Estava tudo embaralhado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Emocionante! Parabéns Pedro!

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.