quarta-feira, 28 de março de 2012

Baseado numa consulta real

Seu José foi consultar-se com um cirurgião cardíaco por conta de uma estenose da válvula aórtica (abertura incompleta da válvula, devido ao seu enrijecimento, prejudicando a função cardíaca). Chegando ao consultório começou logo, como estava habituado, a despejar a montoeira de exames na mesa do doutor.

- Não Seu José, primeiro conta como tudo começou.

O senhor, recém-chegado à hoje denominada (de forma demagógica e controversa) “melhor idade”, estranhou (por mais absurdo que pareça) a pergunta, mas resolveu levar ao pé da letra. Contou que há tempos teve uma dor muito forte, em região lombar alta, irradiada para o abdome, acompanhada de vômitos. O médico que o atendeu na ocasião diagnosticou pedras nos rins e delas tratou, mas orientou-o a consultar um cardiologista, pois casualmente havia ouvido um “soprinho no coração”. Tratados os rins foi ao cardiologista, o qual disse que o soprinho era um soprão. Solicitou exames, que mostraram a tal estenose, cujo tratamento deveria ser cirúrgico. Por isso estava ali naquele momento, em frente ao especialista indicado.
Dado que o doutor até então não interviera no relato, Seu José sentiu-se a vontade para mostrar uma cicatriz no braço, que ganhou após a recente remoção de um ceratoacantoma, tumor de pele que leva ao aparecimento de uma massa crostosa, rija.
Somente quando o paciente se calou, foi que o cirurgião indagou:

- Mas seu José, o que é que está endurecendo o senhor? (pedra nos rins, pele grossa, enrijecimento valvar...)

Apenas com essa pergunta o doutor mostrou que por mais que a nossa medicina esteja cada vez mais fragmentada e quase puramente intervencionista, até um sub-especialista pode e deve ter uma visão holística dos pacientes.

A profissão médica exige uma compreensão do ser humano que vai muito além do físico-químico. Exige-se, acima disso, que se reconheça que por mais conhecimento que tenhamos acumulado, não somos únicos detentores do saber. Há outros profissionais da área da saúde que, quando partícipes, não somente na execução de ordens médicas, como também convidados a colaborar na tomada de decisões, são capazes de melhorar sobremaneira o tratamento do paciente e ajudar na promoção de sua saúde.
Seu José ficou aturdido com a pergunta. Não era iletrado nem nada, muito pelo contrário, tinha sólida formação acadêmica, e entendeu muito bem a pergunta. Daí em diante viu-se dizendo ao médico coisas que jamais imaginaria. Falou de como foi idealista na juventude, de como lutou por certas causas e da frustração de não ter conseguido aquilo que queria. Falou de um casamento fracassado e dos filhos que não o visitavam mais. Chorou.

Passou pela cirurgia, recuperou-se, deu-se conta que não perderia nada em tentar tornar a tal demagógica e controversa “melhor idade” em algo o mais próximo disso; retomou parte de seus projetos e tarde dessas me contou essa história.

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.