terça-feira, 20 de março de 2012

Um conto insólito

Chegou em casa, desafroxou a gravata e começou a se embriagar: de súbito era corno. O pé de igualdade neste direito lhe era intragável, mais ainda do que aquele charuto vagabundo, pseudo-cubano, que ganhou de presente, e o tango argentino que resolveu botar na vitrola, onde mais tarde arremessaria o copo de Wyborowa pura com gelo (atitude da qual se arrependeria de imediato, imaginando ser típico da esposa, ainda mais com La Cumparsita ao fundo). Um pequeno escândalo pequeno-burguês no nível de clichê mais alto que se poderia supor.
A cada gole que tomava a cena de horas antes se tornava mais absurda, afinal, como podia sua namoradinha de infância, reencontrada na pós-graduação em pedagogia Freiriana, tornada esposa em cerimônia religiosa tradicional, lua de mel em Poços de Caldas (estavam mal de grana, comprando apartamento e aquela coisarada toda), mãe de seus dois filhos e entrando no Motel Dallas às quatro da tarde com outra pessoa que não ele!
Não que ele nunca tivesse feito coisa parecida, pelo contrário e desde o inicio, mas oras, não é assim que funciona em nossos tempos, e alias, em todos os outros? “Monogamia nunca foi algo natural no reino animal”, diria ele a esposa se algum dia ela viesse com papo furado pra cima dele. “Animais comem a própria merda”, disse a esposa de um amigo do departamento, quando este tentou enrolar com a história da poligamia, mas sua mulher jamais faria isso, era o que ele imaginava até então.
E a vida parecia ser tão boa, eles faziam sexo com frequência (no mínimo aceitável, ele julgava), faziam programas juntos, foram assistir ao show do Chico, à nova peça do Felipe Hirsch, tinham viagem programada para a Disney (levar os filhos, que estavam indo bem no colégio). Casa na praia, bons amigos, ele fabricava cerveja caseira, nem tinha uma amante fixa, apenas uma ou outra escapada eventual. Ela terminando o pós-doc, fazendo pilates e dando pra outro cara, ou outros!
Deixou a meia garrafa de Wyborowa de lado, apagou o charuto e tentou ser racional. Não conseguindo, pensou pela primeira vez no arremesso do copo, mas deixando-o de lado, pegou uma longneck de sua própria fabricação e aumentou o som. Carlos Gardel bombando na vitrola e os meninos por chegar, eles que nunca viram o pai bêbado, a não ser em festividades. A esposa (vagabunda!) ia chegar sabe-se lá quando, já não tinha certeza dos horários das aulas do pós-doc, a verdade é que depois daquela cena tinha certeza de pouca coisa.
A mistura etílica começou a fazer efeito, e ele decidiu que ficaria ali no sofá até alguém entrar pela porta da sala, e independente de quem fosse ele diria “Vagabunda!”. Se fosse a esposa, seria auto-explicativo, se fossem os filhos, trazidos pelo ônibus escolar, ele completaria com “sua mãe”. Esse sim seria o início da tragédia pequeno-burguesa, mas não havia outra alternativa, ele estava cada vez mais convicto de que este era o papel que lhe caberia a partir de então.
Passou um longo tempo e ninguém chegou, estava voltando para a vodka e entrando na fase de achar culpados. Culpou a rotina, os filhos, o feminismo, a si mesmo, a cerveja que estava tomando, o pilates e até Paulo Freire, mas não se contentou com ninguém. Foi então que do lado do sofá tocou o telefone, e ele num gesto automático atendeu. Era sua mãe, que morava alguns andares abaixo, e pediu que ele descesse para ajudar a consertar o chuveiro. Viúva que era, sempre apelava para o filho nesses pequenos consertos domésticos.
Ele de pronto aceitou, e bêbado, manteve a idéia de dizer “Vagabunda” a primeira pessoa que surgisse pelas portas (agora seria sua mãe, mas ele explicaria rápido). Estava resignado sobre seu novo status, e precisava compartilhar o dramalhão.
Antes de descer pegou finalmente o copo de Wyborowa e tacou-o na vitrola.

Desceu os andares do prédio ensaiando mentalmente tudo o que se seguiria ao “Vagabunda”, mas não foi capaz de elaborar nada muito sofisticado e resolveu que improvisaria. Chegou à porta, tocou a campainha, ouviu passos, a porta se abrindo, tudo muito escuro e como não enxergou nada, já teve de improvisar dizendo “Mãe?” Súbito as luzes se acendem, antes das pupilas se acomodarem à nova iluminação ele ouve “Surpresa!”, buzinas e bexigas fazendo barulho, duas criaturas se agarrando as suas pernas e um coro cantando “Parabéns pra você...”.
Quando se acostumou à luz e à idéia do aniversário, que ele não se lembrara em momento algum durante o dia, viu a mãe, os filhos, a esposa e outras pessoas que depois não se recordaria. Impossível descrever a insólita sensação da qual se apossou naquele momento. Beijou a cabeça das crianças, pegou o mais novo no colo, uma lágrima escorreu-lhe enquanto encarava a esposa. “Vagabunda”, foi o que mais uma vez ele quase disse, pensando que há poucas horas e sabe-se lá quantas vezes mais ela se entregara a outro homem, (“não poupou nem meu aniversário!”). Pensou na vergonha disso tudo, no pessoal da firma sabendo, se é que ela não saia com algum deles. E agora ali, linda, autêntica, a garota ginasial, a mãe de seus filhos, a adultera, todas elas, surpreendentemente numa só.
Ainda assim, o “vagabunda” saiu-lhe “obrigado”, não por bom-senso de ter ali seus filhos, sua mãe e uma festa surpresa, mas por render-se a cada vez mais banal hipocrisia conjugal. Neste caso, alguns ainda chamariam de “corno-mansice aguda” de sua parte, mas o que se entende sobre a vida e as relações? Dito isso, foi ajudar sua mãe a repartir o bolo.

2 comentários:

March disse...

excelente!!

Maia disse...

Otimamente escrito como sempre..
mto cru e mto real, exatamente como eu gosto.

=)

Ahh e obrigado pela dica sobre comer a própria merda (para futuras referências...)

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.