Ninguém nunca tem culpa das barbeiragens no trânsito. Alias,
tem: os outros. Eu, pedestre convicto (há quem possa dizer por falta de opção)
e quase sempre co-piloto, preciso fazer uma pesquisa muito apurada para tentar
lembrar-me de alguma vez em que buzinaços rolaram e a pessoa ao meu lado e ao
volante não tenha recriminado o motorista do outro automóvel. Sempre o outro fez
a curva muito fechada, ou muito aberta, estava rápido demais, ou lento demais.
Regra número 1 da “boa” condução: Nunca temos a culpa.
Impressiona
como estar dentro de um carro, no banco do motorista, transforma tantas
pessoas. Ali, muitas delas assumem outra personalidade. O conjunto de pedais,
câmbio e volante dão um poder transformador a certos indivíduos de dar inveja
às mais hipnotizantes drogas sintéticas. Pessoas ao volante se despem de seus
temores e fragilidades, e como num escape de sua impotência existencial, doam
toda sua energia às mais estrambólicas condutas e manobras, seguidas de reações
descabidas, potencializadas por xingamentos e buzinadas, isso quando a coisa é
leve.
Ainda vivemos
em um tempo em que possuir um carro denota certo status. Quase todo jovem quer
ganhar/comprar seu carro o mais cedo possível. E não sejamos hipócritas, ter um
carro ajuda em muitas coisas. Mas seria muito interessante se boa parcela da
turma usasse o carro, nem que por metade do tempo, de maneira socialmente
responsável. Mas ninguém tá nem aí. Numa sociedade regida pelo consumo, “quanto
mais excludente for minha compra, mais status eu terei”. Então, como em geral
todos compram uns carros mais ou menos parecidos, haja vista nossa economia que
permite um mercado automobilístico absurdamente oligopolizado, sem concorrência
(aí já outro assunto), o negócio é botar um aparelho de som que sozinho
satisfaria um rodeio e sair cantando pneus.
Se o
problema fosse simplesmente referente a mostrar “poder” por possuir um carro, a
coisa ainda tava bonita, mas é que o fato de todo mundo querer ter carro pra
usar do jeito que se usa, vira bagunça.
“Cidade
avançada não é aquela em que os pobres tem carros, mas sim aquelas em que os
ricos utilizam o transporte público”. Esta frase do ex-prefeito de Bogotá,
Enrique Penarosa, parece poder jogar parte da culpa no poder público, que pouco
investe para que possamos de fato deixar de usar os carros. Pode até ser, mas
há de se explicar à turma que enquanto vizinhos saírem de casa dirigindo cada
um seu carro de cinco lugares, levando somente uma pessoa, e todos indo mais ou
menos para o mesmo lugar, os congestionamentos nunca acabarão. Enquanto ninguém
pensar coletivamente, sofreremos ad eternum, o indivíduo e o coletivo. Também
temos de fazer nossa parte.
Há quem
diga que esse individualismo, expresso, entre outros, por essa questão automobilística,
faz parte de um processo social em curso, que prioriza o indivíduo em
detrimento da família, o chamado “pós-familismo”. Neste conceito, as pessoas se
identificam mais com classes do que com a família. Daí a questão implícita,
mesmo que aparentemente oculta, da necessidade de ter um carro. Além disso,
estamos num tempo em que as pessoas preenchem suas vidas com bens de consumo,
além da pressão social pelo “investimento pessoal”, e até um impulso da família
moderna, que objetiva criar “indivíduos autônomos”.
Tudo
isso cria uma miscelânea conflitiva e alienante na cabeça da turma, que acaba
por simplesmente seguir o fluxo. Só pode ser isso, pois, para mim, é totalmente
impensável uma vida sem família. O que acontece é que temos enraizada a ideia
de família como a conexão obrigatória por laços consanguíneos. Tudo bem, isso é
família, mas é uma das configurações possíveis. Penso, como li recentemente, e
como tive o privilégio de constatar desde cedo, que família vai muito além da
concepção tradicionalmente aceita pela sociedade; é algo que tem muito mais a
ver com a qualidade dos laços criados, independente do momento da vida.
A
transição de assuntos foi quase casual, mas leva a uma proposta clara: é muito
difícil abdicarmos de certos confortos em favor de outras pessoas. Para algumas
pessoas isso só é possível quando se trata da própria família. No momento em
que entendermos que no fundo, como disse um grande mestre “somos todos uma
grande família sobre a terra”*, certamente não só o trânsito, como outros
grandes problemas receberão suas soluções.
*Se não me engano, vi essa frase num vídeo chamado “A
entrevista perdida de Bruce Lee”, vale a pena conferir, hehe.
Um comentário:
Muito bom Fumaça.... Principalmente a parte dos vizinhos que saem com seus carros no mesmo horário com uma pessoa só no carro, deixando de tirar 4 carros das ruas, caso desse carona..... Parabéns pelo texto.... Abraço Do Castor
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