quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Automóveis, família e sociedade


Ninguém nunca tem culpa das barbeiragens no trânsito. Alias, tem: os outros. Eu, pedestre convicto (há quem possa dizer por falta de opção) e quase sempre co-piloto, preciso fazer uma pesquisa muito apurada para tentar lembrar-me de alguma vez em que buzinaços rolaram e a pessoa ao meu lado e ao volante não tenha recriminado o motorista do outro automóvel. Sempre o outro fez a curva muito fechada, ou muito aberta, estava rápido demais, ou lento demais. Regra número 1 da “boa” condução: Nunca temos a culpa.
Impressiona como estar dentro de um carro, no banco do motorista, transforma tantas pessoas. Ali, muitas delas assumem outra personalidade. O conjunto de pedais, câmbio e volante dão um poder transformador a certos indivíduos de dar inveja às mais hipnotizantes drogas sintéticas. Pessoas ao volante se despem de seus temores e fragilidades, e como num escape de sua impotência existencial, doam toda sua energia às mais estrambólicas condutas e manobras, seguidas de reações descabidas, potencializadas por xingamentos e buzinadas, isso quando a coisa é leve.
                
Ainda vivemos em um tempo em que possuir um carro denota certo status. Quase todo jovem quer ganhar/comprar seu carro o mais cedo possível. E não sejamos hipócritas, ter um carro ajuda em muitas coisas. Mas seria muito interessante se boa parcela da turma usasse o carro, nem que por metade do tempo, de maneira socialmente responsável. Mas ninguém tá nem aí. Numa sociedade regida pelo consumo, “quanto mais excludente for minha compra, mais status eu terei”. Então, como em geral todos compram uns carros mais ou menos parecidos, haja vista nossa economia que permite um mercado automobilístico absurdamente oligopolizado, sem concorrência (aí já outro assunto), o negócio é botar um aparelho de som que sozinho satisfaria um rodeio e sair cantando pneus.
Se o problema fosse simplesmente referente a mostrar “poder” por possuir um carro, a coisa ainda tava bonita, mas é que o fato de todo mundo querer ter carro pra usar do jeito que se usa, vira bagunça.
“Cidade avançada não é aquela em que os pobres tem carros, mas sim aquelas em que os ricos utilizam o transporte público”. Esta frase do ex-prefeito de Bogotá, Enrique Penarosa, parece poder jogar parte da culpa no poder público, que pouco investe para que possamos de fato deixar de usar os carros. Pode até ser, mas há de se explicar à turma que enquanto vizinhos saírem de casa dirigindo cada um seu carro de cinco lugares, levando somente uma pessoa, e todos indo mais ou menos para o mesmo lugar, os congestionamentos nunca acabarão. Enquanto ninguém pensar coletivamente, sofreremos ad eternum, o indivíduo e o coletivo. Também temos de fazer nossa parte.
               
Há quem diga que esse individualismo, expresso, entre outros, por essa questão automobilística, faz parte de um processo social em curso, que prioriza o indivíduo em detrimento da família, o chamado “pós-familismo”. Neste conceito, as pessoas se identificam mais com classes do que com a família. Daí a questão implícita, mesmo que aparentemente oculta, da necessidade de ter um carro. Além disso, estamos num tempo em que as pessoas preenchem suas vidas com bens de consumo, além da pressão social pelo “investimento pessoal”, e até um impulso da família moderna, que objetiva criar “indivíduos autônomos”.
Tudo isso cria uma miscelânea conflitiva e alienante na cabeça da turma, que acaba por simplesmente seguir o fluxo. Só pode ser isso, pois, para mim, é totalmente impensável uma vida sem família. O que acontece é que temos enraizada a ideia de família como a conexão obrigatória por laços consanguíneos. Tudo bem, isso é família, mas é uma das configurações possíveis. Penso, como li recentemente, e como tive o privilégio de constatar desde cedo, que família vai muito além da concepção tradicionalmente aceita pela sociedade; é algo que tem muito mais a ver com a qualidade dos laços criados, independente do momento da vida.

A transição de assuntos foi quase casual, mas leva a uma proposta clara: é muito difícil abdicarmos de certos confortos em favor de outras pessoas. Para algumas pessoas isso só é possível quando se trata da própria família. No momento em que entendermos que no fundo, como disse um grande mestre “somos todos uma grande família sobre a terra”*, certamente não só o trânsito, como outros grandes problemas receberão suas soluções.

*Se não me engano, vi essa frase num vídeo chamado “A entrevista perdida de Bruce Lee”, vale a pena conferir, hehe.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom Fumaça.... Principalmente a parte dos vizinhos que saem com seus carros no mesmo horário com uma pessoa só no carro, deixando de tirar 4 carros das ruas, caso desse carona..... Parabéns pelo texto.... Abraço Do Castor

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.